ANGOLA: PAÍS BANCARIZADO NO DISCURSO, DESBANCARIZADO NA VIDA

SAMPAIO JÚNIOR

A confiança dos empresários angolanos continua a navegar em maré rasante, há cinco ciclos consecutivos. A nau da iniciativa privada segue à deriva, sem bússola, sem vela e, em demasiados casos, sem quilha, como um navio condenado a errar sem porto e sem horizonte.

Um poder que promete oceanos e oferece poças, que exige aplausos mesmo quando entrega silêncio. Substância? Escassa. Propósito? Diluído. Resultado concreto? Um silêncio ensurdecedor que ecoa pelos corredores da realidade. E assim o ano caminha para o seu ocaso, não com a dignidade de um crepúsculo sereno, mas com o cansaço de um palco gasto, onde se repetem as mesmas cenas e os mesmos actores.

Que venha 2026 não como redenção, mas como continuação da tragicomédia nacional adornada por episódios de galhofa institucional. Como aquela cena protagonizada por um alto funcionário da Presidência da República, o senhor Ernesto Manuel Norberto Garcia, imortalizada nas redes sociais perante uma singela mangueira, símbolo, não da fecundidade da terra, mas da pobreza do gesto e da abundância do vazio.

O mais grave, porém, é o esquecimento das causas que conduziram a este estado de penúria em que vivem os angolanos. As responsabilidades não são invisíveis, nem abstractas. São políticas, cumulativas e persistentes. A ausência de crédito bancário, a burocracia de feitio barroco e, quando o milagre do financiamento finalmente se materializa, taxas de juro vorazes como predadores em mar aberto. O negócio, assim, não floresce. Definha. E o povo, esse, assiste, em silenciosa angústia, à erosão contínua do seu poder de compra, como quem vê o próprio salário ser tragado por um abismo.

Os comerciantes angolanos, outrora senhores das praças, das lojas e dos balcões, converteram-se em espécie rara, quase em extinção. O comércio, que deveria ser espelho da vitalidade nacional, jaz hoje entregue a mãos estrangeiras, como se o mercado angolano fosse um órfão económico deixado à tutela alheia, não por acaso, mas por opção política prolongada no tempo. 

O senhor Norberto não deveria olvidar que o partido em que igualmente serviu como porta-voz, carrega impressões digitais indeléveis na trajectória sombria que marca a vida de milhões de angolanos. Não se trata de mero juízo retórico, mas de um registo histórico incontornável, onde decisões políticas, omissões prolongadas e estratégias de poder, causam marcas profundas no quotidiano nacional e na consciência colectiva do povo.

Como bem assinalou Carlos Rosado de Carvalho, no seu espaço Economia 100 Makas, o único sector que ainda navega em águas relativamente serenas é o da construção. Coincidência que não engana, basta aproximar-se o aroma da pré-campanha e as obras irrompem do chão como cogumelos após a chuva. Em Benguela, por exemplo, multiplicam-se as intervenções de asfaltagem em bairros periféricos, com destaque para o Bairro da Graça. No período chuvoso, a circulação nesses espaços é um verdadeiro exercício de resistência. O asfalto surge, mas a seriedade permanece ausente.

Aqui se revela a alma de um sistema, uma governação saturada de gestores de ocasião, peritos na arte da oportunidade imediata, doutorados na retórica do improviso e licenciados em sofismas de conveniência. O dinheiro público, em vez de se converter em bem-estar colectivo, transforma-se em combustível recorrente de práticas obscuras em tempos eleitorais. A obra é acessória; o banquete é central.

Cheguemos, então, à grande ópera-bufa nacional, que revela que somente 30,9% dos angolanos possuem contas bancárias e mais de metade permanece fora do sistema financeiro formal. A razão é de uma simplicidade cruel, sem bilhete de identidade não há conta, sem conta não há cidadania financeira. Ainda assim, Angola ambiciona atingir uma taxa de inclusão de 65% até 2027, projecto que habita mais a literatura de ficção científica do que o domínio da política pública real.

O ministro de Estado José de Lima Massano, em ambiente climatizado e sob o brilho disciplinado dos diapositivos, apresentou a Estratégia Nacional de Inclusão Financeira (ENIF), verdadeiro monumento de papel e intenção. Informou que apenas um em cada quatro angolanos detém conhecimentos mínimos de literacia financeira, e que a circulação do dinheiro permanece concentrada nos mesmos espaços de sempre: Luanda, o litoral e a região centro, enquanto o interior prossegue confinado à economia da escassez.

Os próprios diagnósticos oficiais traçam um retrato sem retoques: fraca bancarização, acesso difícil à identidade civil, reduzido uso de crédito, poupança e seguros, e uma banca digital que avança com a lentidão resignada de uma tartaruga exausta.

Promete-se tudo: microcrédito, banca móvel, parcerias estratégicas, prosperidade, inclusão e futuro. Tudo proclamado em auditórios climatizados, entre apresentações digitais e café quente. Cá fora, o cidadão conserva as mãos frias, o bolso roto e a esperança hipotecada. E sem B.I.

A ENIF, garantem, terá o condão de transformar vidas. Na prática, assemelha-se a mais um “chacho”, na expressão popular do musseque, discurso belo, substância vazia, ornamento verbal sobre a pobreza do conteúdo.

O resultado é este, um governo que fala em abundância, executa com parcimónia e entrega com escassez. Um Estado que promete estabilidade e distribui incerteza. Um poder que se diz reformista, mas que persiste imutável na sua essência.

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