O ESTADO DA AGRICULTURA ANGOLANA E DA NAÇÃO

Facilmente se entende como o Estado tem confundido incentivos económicos e produtivos com atribuições de benefícios, nomeadamente compensação de alianças político-partidárias ou pagamento de favores ou, mesmo, de cooptações políticas…

CONVERSA NA MULEMBA

FERNANDO PACHECO*

Era frequente, por volta dos anos 70, considerar que o desenvolvimento agrícola de um país em desenvolvimento era função de quatro “Is”: instituições, investigação, infraestruturas e incentivos. Ao Estado era atribuída, naturalmente, a maior quota de responsabilidade na criação de condições para que a acção de tais “Is” tivesse lugar, através da definição de políticas adequadas no quadro de um problema político.

Ao analisarmos como, em Angola, a “doença holandesa” tem condicionado a política em geral e as escolhas das políticas nos mais diversos sectores da economia e da sociedade, facilmente se entende como o Estado desconsiderou a criação de instituições fortes e inclusivas, através da escassez de recursos humanos e financeiros atribuídos em quantidade e qualidade, favorecendo a corrupção, o compadrio e a burocracia. Como o Estado desprezou a investigação científica e menosprezou até o chamado conhecimento endógeno, assumindo, na teoria e na prática, que o dinheiro do petróleo comprava tudo o que fosse necessário. Como o Estado lidou com a reabilitação das infraestruturas e, mais tarde, com a construção de novas, sem preocupações com a definição de prioridades e com a gestão e manutenção das ditas. Por fim, facilmente se entende como o Estado tem confundido incentivos económicos e produtivos com atribuições de benefícios, nomeadamente compensação de alianças político-partidárias ou pagamento de favores ou, mesmo, de cooptações políticas, o que inquina totalmente o funcionamento do mercado enquanto ente mediador da interacção entre produtores e consumidores.

Este panorama tem tido consequências negativas na evolução da agricultura desde há muito. Mas fixemo-nos no período que corresponde aos mandatos do Presidente João Lourenço. Depois de uma regressão de 2%, em 2018, a agricultura angolana cresceu entre 5 e 6% por ano, até 2021, e 3,8% e 2,7% nos anos seguintes, até 2023, de acordo com o Ministério do Planeamento. Olhando apenas para 2024, o Ministério da Agricultura refere que a produção agrícola cresceu 1,7% e a pecuária retrocedeu 2%. Ou seja, com base em informação do INE, as taxas de crescimento têm vindo a diminuir desde 2021. Esta fria realidade dos números contradiz o optimismo do Presidente, plasmado no discurso sobre o Estado da Nação – ao referir que a agricultura e a pecuária cresceram 33% e 143%, respectivamente, em termos acumulados, pressupondo-se que, em relação a 2018, por acção do PRODESI – bem como o de certas franjas da sociedade, sempre hiperbolizado pela comunicação social pública.

Segundo a FAO, Angola parece ter alcançado a auto-suficiência para três produtos: banana, mandioca e batata doce. Mas o que significa auto-suficiência num país onde a fome e a subnutrição estão presentes e em crescimento? A auto-suficiência não pode ser confundida com ausência de importação. 

Entre 2020 e 2024, Angola gastou uma média anual de aproximadamente USD 2,4 mil milhões na importação de bens agrícolas e alimentares. Se, para além dos gaps entre a produção interna e as importações, tivermos em consideração as limitações de acesso por falta de poder de compra e o conceito de alimentos substituíveis, isto é, aqueles que podem figurar na dieta alimentar em substituição de outros de difícil acesso, conclui-se que tais alimentos não cobrem as necessidades. Logo, relativamente a esses produtos, não se pode falar em auto-suficiência.

Em Angola, são cultivados, anualmente, aproximadamente seis milhões de hectares de terras, dos quais cerca de 90% por conta da agricultura familiar. Desta área total, apenas 6% é trabalhada com tractor e 28% com tracção animal, sendo a restante (66%) trabalhada com enxadas. Em pleno século XXI, esta é uma realidade chocante e pode explicar, em parte, por que razão a área média por família se limita a cerca de dois hectares, praticamente metade da área média trabalhada nos anos 70. Outra parte da desmotivação reinante é devida à inexplicável ausência de mercado estruturado nas áreas rurais.

O Recenseamento Agropecuário e de Pescas (RAPP) apurou, em 2020, a existência de mais de 70 mil tractores. Caso estivessem todos operacionais, isso significaria uma capacidade de cultivo de cerca de 3,5 milhões de hectares por ano, dez vezes mais do que a área efectivamente trabalhada com tractor (360 mil). A discrepância será erro do RAPP ou uma evidência do elevadíssimo número de tractores avariados ou inoperantes?

Aqui chegados, é forçoso, uma vez mais, chamar a atenção para a ligeireza com que se trata a questão da mecanização. Importar tractores, ou autorizar a sua importação, sem definição de uma política que contemple limitações de marcas, formação de operadores e mecânicos e de gestores de parques de máquinas, e sem garantia de funcionamento da cadeia logística, é muito pouco sensato. O recente recurso a motocultivadores pode ser um dos caminhos alternativos, mas há que ser feita uma avaliação sobre o seu desempenho. Outros caminhos podem ser seguidos, como o uso de tecnologia não motorizada, como acontece em muitos países asiáticos, mais barata do que os tractores e cuja produtividade é muito superior à das enxadas. Um caminho que poderia ajudar jovens a não emigrar para as cidades e recomendável para a nossa escassez de divisas.

Em 2008, pela primeira vez na história da Humanidade, a proporção de pessoas residentes no campo ficou aquém de 50%. Hoje, apenas 42% dos humanos vivem no campo. Para uns, a urbanização das sociedades é natural e incontornável e significará a extinção, a prazo, de um mundo associado, de modo preconceituoso, à antítese do progresso – o mundo camponês. Para outros, o esvaziamento dos campos representa um desajustamento, que está a provocar enormes danos, quer nos centros urbanos, devido às dificuldades de absorção de tanta força de trabalho, à sobrecarga das infraestruturas e equipamentos sociais e à consequente degradação das condições de vida, quer no campo, sedento de progresso. Ao mesmo tempo, esse esvaziamento dos campos põe em perigo a segurança nacional e a das pessoas, propriedades e infraestruturas e equipamentos nas áreas rurais.

Estas são algumas das reflexões que o discurso do Presidente sobre o Estado da Nação me suscita. Um discurso, infelizmente, tão previsível e tão longo e cansativo quanto eu e muitos outros analistas vaticinámos há uma semana. A novidade foi o anúncio da atribuição das condecorações alusivas ao 50º aniversário da independência a todos os subscritores. Uma cedência pouco habitual às pressões da sociedade, mas que representa, ao mesmo tempo, uma desconsideração à bancada parlamentar do MPLA, tão pressurosa a aplaudir, agora, a decisão do líder partidário como o foi ao recusar as propostas dos partidos da oposição há alguns meses atrás. Decisão triste por vir de alguém que, há anos, garantia ser contra o culto de personalidade. E foi totalmente descabida a alusão à palavra perdão, só admissível se fosse seguida de uma outra: mútuo.

PS – O Ministério da Juventude e Desportos recebeu 21 cavalos provenientes da Namíbia para reforçar o compromisso com a massificação do desporto. Loucura? Admiração? Não, apenas a confirmação do desprezo dos governantes em relação aos cidadãos comuns.

*Novo Jornal, 17 de Outubro de 2025

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