CONVERSAS NA MARGEM SUL (2)

JAcQUEs TOU AQUI!

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Não há nada como o tempo para mudar as coisas. Até as pessoas mudam com o tempo. Modificam a aparência, havendo as que mudam o visual juntamente com o carácter. Essa mudança, convenhamos, é difícil de ser notada em certas pessoas. O tempo aqui, por enquanto, vai-me mostrando o que pode, ou seja, não mostra muito mais que o horror dos incêndios que, por estes dias, atingiu parte significativa do país. Os telejornais indicam desesperadamente que os incêndios não dão tréguas aos bombeiros e às populações.  Estas, como sempre, são as que mais sofrem.

Contudo, essas desgraças não me desabituam do frenético movimento das estações de caminho-de-ferro. Como o tempo que corre, nestas paragens os comboios não param. Apenas o suficiente para deixar e levar passageiros. O seu constante vai e vem envolve o transporte diário de milhares de pessoas, a todas as horas do dia, nuns dias mais do que noutros. É enorme e impressionante esse movimento. Sinal claro do tempo a avisar que há pouca gente parada. Certezas de que grande parte do mundo se mexe!

É nesse clima que me ponho a sonhar. Com impossíveis, com coisas que me fazem andar nas nuvens. Viajo num voo imaginário que atravessa este velho continente, rasga os ares e ruma para Angola. Onde me aguardam desgraças diferentes. Que me fazem ver difusas linhas de comboio a transportar o povo. Apeadeiros em todas as comunas, com os comboios rasgando distâncias no imenso território. Começo com curtas viagens. Entre o Bungo e Cacuaco, ainda e somente. Com o comboio a marchar, pouca-terra, pouca-terra, em direcção a outras estações que se cruzam com as que levam pessoal do Cazenga que vai para Viana, sempre a apanhar e a deixar gente com as suas imbambas. Estes sonhos trazem-me enormes dores de cabeça, mas não deixo de sonhar, porque, afinal, não custa nada sonhar. E eu sou, por natureza, um eterno sonhador.

Às terças e quintas-feiras tenho encontro marcado em Lisboa, no Hospital. Tenho compromisso com a fisioterapia. O tendão de Aquiles está indo bem, felizmente, muito obrigado. Melhora a olhos vistos, mercê, também, das longas caminhadas que sou obrigado a fazer. Esticam a musculatura e ajudam bastante. Apesar do calor infernal dos últimos dias. Marcam o escaldante ambiente que assola a floresta portuguesa de Norte a Sul.  São fogos que não têm nada a ver com as grandes queimadas do Mucongo do meu saudoso Calulo. Ali o céu não se mostrava tão escarlate como este daqui, onde as imagens que se mostram fazem pensar no Inferno. Aqui também, nessas queimadas, são sacrificados animais, como nas nossas eram as pakasas, as palancas e os mbuijis. Os fogos de cá são provocados e empurrados por ventos quentes que assustam cada vez mais e colocam este pequeno país num sufoco de fortes emoções, escondendo interesses vários, alguns deles miseráveis.

Sempre há tempo para dar uma vista de olhos nas notícias que enchem os telemóveis e computadores. Há novidades da terra, todos os dias. Justificam o vício adquirido de querer saber. Os críticos da política e da situação não poupam os inimigos de estimação, avançam cada vez mais resolutamente sobre eles. Há afirmações de bradar aos céus! Dividem-se opiniões sobre os pronunciamentos dos que arranjam coragem para despejar as suas mágoas e desencantos, agora até no Parlamento. E sou surpreendido por imagens desconcertantes. Há de tudo, até gente grande, rotulada com título de político de primeira, que se apresenta a cantar. Fazendo preces, balbuciando hossanas, puxando a voz que implora felicidade. Como têm tempo para essas apresentações? A política dá para tudo e, afinal de contas, quem canta seu mal espanta, costuma dizer-se. Algumas imagens fazem-me lembrar Nero, o Imperador Romano, que no tempo do atraso da civilização que se dizia adiantada, cantava quando tinha assomos de loucura, ou quando se embebedava. Estava nesse estado demente quando do alto da sua varanda eleita, viu Roma, a eterna, a arder. A queimar por ordem sua, resultante da sua incompetente governação que lhe dava plenos poderes, até o de destruir a terra e matar pessoas. Não pode haver comparações, mas se as houver, vou pelo cobarde princípio de que qualquer semelhança é pura coincidência.

Quando iniciei essa andança em terra tuga, ainda o tempo não queimava tanto, nem me sentia obrigado a usar os meus velhos calções do tipo que são utilizados pelos velhos turistas europeus e americanos excursionando pelo Mundo. Já passaram uns largos meses sobre o tempo em que andava calmamente a pedir informações, indicações do género, qual é a linha, como encontro as escadas que me levam ao Metro? Ajudaram-me a descobrir que a linha que liga Lisboa a Setúbal é muito frequentada, e que eu fico normalmente a meio-caminho, exactamente na Coina – que nome mais extravagante – avisando desde logo que não faço do nome uma ópera interminável, mesmo que aguce a minha curiosidade. Existem outros nomes que me intrigam, mas aplaudo, casos de Fogueteiro, Fornos de Amora, Corroios. Mas, afinal, que importância têm os nomes? Que diferença fazem dos nossos Xá Muteba, Xamisso, Muquitixi ou Pungo Andongo? 

Tenho ouvido falar de maus comportamentos de gente nossa na linha de Sintra. Do lado oposto da que utilizo frequentemente. Dizem que os nossos rapazes abandalham as estações, não compram bilhetes e fazem a vida difícil à Polícia. Provocam tumultos, às vezes obrigam a disparar tiros. Por aqui, pelo menos de e para a Coina, sempre a partir para ou a sair de Coina, só vejo bons comportamentos. Até nos cuidados de jovens a cederem, em momentos de avalanche de passageiros, lugares a doentes, grávidas e idosos como eu. Acredito que no percurso até Setúbal aconteça o mesmo. A propósito da terra de Bocage, entendo porque há gente nossa que se perde de amores por ela e pelas suas redondezas. É cidade bonita, boa terra para se viver. Entendo porque os nossos patrícios Conceição, José Maria, Jacinto João e muitos outros conterras nossos a adoravam. Não seria apenas pelo futebol que promoviam com a arte e nobreza própria do desporto das multidões, nem sequer pela fama do bom peixe ou do choco incomparável da região. 

Essa malta do nosso orgulho, nada tinha a ver com esta que se apresenta nos dias de hoje com estatuto de miss, de milionários feitos à pressa sem explicação, uns sábios em promover escândalos que dão direito a notícias em capas de jornais e enriquecem cada vez mais o nosso currículo de gente sem maneiras, conquistado por via dos seus comportamentos. Não! Os nossos antigos não pertenciam a essa casta vergonhosa.

Penso nestas coisas que magoam quando a fome me aperta. E é por via disso, pelas coisas e pelas pessoas, que os meus olhos procuram e vão encontrando coisas boas por aqui. Simples, mas boas. Já chega de porcaria e pouca-vergonha. A meio do desabafo, faço uma descoberta. Junto às escadas de acesso à plataforma do comboio, está uma lanchonete. Comenta-se que faz sainete com a qualidade do seu cachorro-quente. Há quanto tempo não como um bom cachorro-quente! Faço a encomenda. Não há mesas nem cadeiras, e resolvo sentar-me nas escadas que levam à plataforma superior. Saboreio o produto e lanço o grito triunfante! Saiu com o mesmo ímpeto lançado pela nossa querida Dadá, criatura única nos tempos em que os namorados, mesmo em tempo de Independência, ainda se comunicavam por carta. Dadá vinha de experiência recente e confidenciava aos amigos mais chegados. “Aquilo é carta ou quê?” Era, na verdade, carta que fez sofrer o pobre do Zé Maria ao lê-la! Recordando, vi-me a dizer o mesmo do cachorro-quente, preparado a preceito pela senhora brasileira da lanchonete. Com todos os seus matadores, sem nada para se deitar defeito. Salsicha meio-dura, tipo alemã, milho cozido, ketchup, maionese, mostarda e chourição. Aquilo é hot dog ou quê?

Por hoje chega meus amigos. Com os meus habituais cumprimentos, despeço-me com o desejo habitual de vos querer junto a mim, no domingo próximo, à hora o matabicho.

Fernão Ferro, Portugal, 17 de Agosto de 2025 

P.S. – Não há bela sem senão. Na viagem de ontem, antes do envio desta crónica, o ar condicionado do comboio avariou. Viagem horrível, calor infernal a lembrar incêndios, a pior deste meu trajecto quase diário, Sete Rios-Coina!

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