QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, ATÉ O PEIXE DESCONFIA

O mar, esse velho cúmplice silencioso, já perdeu a conta das promessas que lhe fizeram. E enquanto o Governo inaugura centros que não funcionam, e anuncia programas que cheiram a campanha eleitoral, o povo continua a pescar o sustento em marés de incerteza. 

SAMPAIO JÚNIOR* 

“Quando a esmola é grande, o pobre desconfia” ou, como diria o sábio da rua, “quando a esmola é demais, até o santo muda de bairro”. O velho provérbio cai que nem rede de pesca sobre as promessas do Governo, que acaba de lançar o Programa Nacional para o Desenvolvimento das Vilas Piscatórias.

Como sempre, no início, tudo muito bonito: investimento inicial de 800 milhões de kwanzas e discurso salpicado de palavras caras “sustentabilidade”, “cadeia de valor”, “resiliência comunitária” e outras pérolas do dicionário governamental. O objectivo? Melhorar as condições de vida das comunidades piscatórias. O resultado provável? Mais um banquete de promessas servido em prato de plástico.

O anúncio veio da ministra Carmen Neto, que, com aquele ar de quem descobriu o mar pela primeira vez, explicou que o programa assenta em três pilares: social, económico e ambiental. Tradução livre: o social serve para discursar, o económico para justificar despesas, e o ambiental, bem, esse é para enfeitar o PowerPoint.

A ministra falou ainda em “dignificar a pesca artesanal”, o que soa bonito até lembrarmos que muitos desses centros já existem, nas localidades como Egipto Praia e Equimina (Benguela) mas as infraestruturas nunca chegaram a funcionar.

Quem lá passou como este escriba, sabe bem que os pobres pescadores se recusaram a usar os centros, porque os seus “gestores” cobravam como se vendessem caviar. Resultado, os homens do mar continuaram a vender peixe nas praias do Lobito, entre lixo, confusão e aquele inconfundível ‘perfume’ de decadência à beira-mar. O cheiro nauseabundo é tanto, que o empresário Sandro Barbosa já ensaia patrocinar chatas de bambu. Mas esse é assunto para outro artigo. Até lá…

Mas não faz mal. Agora tudo será diferente, como prometem. Vão transformar as vilas piscatórias em “Agro-Vilas” e “Vilas Turísticas”. O Governo, esse eterno poeta, a rimar promessas com ilusões. Colocam sempre a carroça à frente dos bois ou, neste caso, o iate à frente do barco de remos.

Enquanto se sonha com turistas a provar moquecas de dourada sustentável, o Presidente da República foi inaugurar o Centro Nacional de Coordenação e Vigilância Marítima, na Barra do Cuanza. Uma estrutura de nome comprido e de propósito nobre, o de vigiar a costa.

O problema é que a costa continua entregue ao deus-dará e aos tubarões, e nem todos nadam no mar. Outros dois centros, no Lobito e no Namibe, “deviam entrar em funcionamento ainda este ano”, dizem isso, até o peixe queimar no forno.

E, para dar um toque policial ao enredo, o SIC prendeu recentemente em Luanda, quatro cidadãos, um vietnamita, um são-tomense e dois angolanos, por pesca ilegal de arrasto. Um sucesso digno de reportagem na TPA, com direito a música épica e close-up nos camarões apreendidos. Em Benguela, o povo já nem precisa da TPA para ver o filme, porque faz ele próprio as filmagens.

Nas redes sociais circulam vídeos de arrastões que quase chegam à praia, enormes embarcações a dar corrida aos cardumes que tentam fugir dos seus predadores humanos. A cena parece saída de um documentário da National Geographic, só que, sem a narração britânica e sem fiscalização.

Até parece que não existem forças policiais nem fiscais do mar para coibir a pesca em zonas proibidas. Pelo menos, que aparecessem “para inglês ver”, só para desbaratar, ainda que de faz-de-conta, a caravana de ímpios que navegam impunes pelas águas do litoral de Benguela.

Mas, o que realmente intriga é: se a lei diz que a pesca artesanal é exclusiva de cidadãos nacionais, quem garante que nas tais “vilas piscatórias modelo” não apareçam uns expatriados bem colocados a gerir o negócio? A resposta é simples: ninguém.

O mar, esse velho cúmplice silencioso, já perdeu a conta das promessas que lhe fizeram. E enquanto o Governo inaugura centros que não funcionam, e anuncia programas que cheiram a campanha eleitoral, o povo continua a pescar o sustento em marés de incerteza. 

Afinal, em ano pré-eleitoral, a generosidade governamental floresce mais depressa do que peixe em tanque chinês. É nesta época que brotam programas e projectos que, com leviandade, abrem a bolsa do Estado como quem abre uma torneira. O dinheiro escorre do erário sem que um só deputado (da bancada da oposição) ouse levantar a voz, e temem ser lacrados pelo regime, antes mesmo de terminar a frase. 

Isto é Angola, um país governado por um Camões moderno, que vê tudo com um olho só e finge não enxergar o resto. Porque, como diz o ditado, “Quando a esmola é demais, até o peixe desconfia.”

*Em Benguela (texto e fotos)

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