OS RUSSOS DETIDOS EM ANGOLA E A SÍNDROME DO HOTEL RUANDA

Quem teria interesse em deteriorar as relações entre Angola e a Rússia e de que forma este objectivo poderia ser concretizado?  

ORLANDO VICTOR MUHONGO* 

No princípio de Agosto de 2025, órgãos de comunicação social angolanos anunciaram a detenção de dois cidadãos de nacionalidade russa e alguns angolanos, por parte da instituição de investigação criminal deste país, sob a acusação de associação criminosa, financiamento ao terrorismo e falsificação de documentos.

É importante realçar que, o facto foi tornado público uma semana depois de Luanda e outras cidades de Angola terem registado (durante os dias 28, 29 e 30 de Julho) os maiores actos de sublevação popular da história do país das últimas três décadas, como consequência do aumento do preço dos combustíveis, subida do preço do táxi e de diversos bens e serviços.  

Foi neste contexto que os cidadãos Ígor Racthin e Lev Lakshtanov (inicialmente considerados membros do já extinto grupo Wagner) foram detidos e apresentados como supostos instigadores e/ou financiadores da citada rebelião popular.   

A larga maioria dos angolanos nas redes sociais desacredita não apenas a tentativa de se associar alguma organização política nacional ou estrangeira aos actos de 28 de Julho, tal como foi mencionado em pronunciamentos oficiais, mas também a suposta participação dos alegados cidadãos russos, tendo as referidas alegações sido convertidas em motivo de piada e comédia na internet. 

A descrença da maioria dos cidadãos e analistas está relacionada com conhecimento da realidade de Angola, mas também com a memória de outro episódio recente relacionado com uma suposta tentativa de atentado contra o ex-presidente dos EUA, Joe Biden, atribuída a indivíduos que, alegadamente, terão estabelecido contactos com o exterior do país e preparado toneladas de explosivos que nunca foram exibidos.  

Numa dinâmica oposta à incredulidade da maioria dos angolanos está a imprensa ocidental. O mesmo conjunto de órgãos de informação de países tecnicamente em guerra contra a Rússia, quer por via dos sucessivos esforços para consumar o cerco da OTAN a este país, quer por meio do apoio militar que fornecem à Ucrânia, está em êxtase com a notícia da detenção de cidadãos russos em Angola. É precisamente aqui onde reside o cerne do enredo. 

As potências ocidentais têm estado em competição com a Rússia pelo controlo de espaços de influência em África. Desde 2014, a Rússia tem levado a cabo um processo de revitalização da sua relação com diversos países do continente. No entanto, no caso de Angola, as relações do país eslavo com este Estado africano sempre permaneceram sólidas, mesmo depois de 2018, quando Luanda efectuou uma viragem brusca para Washington.   

Quem conhece a história da Rússia sabe que a instigação ou o financiamento de actos de sublevação popular ou a desestabilização de outro país não fazem parte do modelo de actuação da sua doutrina política. Ao contrário da prática típica das potências ocidentais, que tem sido o financiamento de revoluções coloridas em diversas partes do mundo por meio de ONG, ou directamente através de estruturas estatais como agências de inteligência, não existem registos históricos sobre a participação da Rússia em práticas semelhantes, principalmente no continente africano. 

A história da relação da Rússia com Angola tem sido de apoio e solidariedade, que foram decisivos para a obtenção da independência por parte deste país africano, assim como para a derrota das forças do Apartheid. Todas as vezes que a Rússia agiu militarmente ou com medidas políticas, foi sempre em reacção a uma ameaça directa contra a sua integridade e soberania. Em geral, a política externa russa pauta-se por ética nos procedimentos. Trata-se de um país cuja cultura atribui primazia à diplomacia e ao respeito pelos outros Estados e povos. A Rússia jamais se envolve em jogos mesquinhos.  

Existe uma questão fundamental que deve ser colocada:

– Quem teria interesse em deteriorar as relações entre Angola e a Rússia e de que forma este objectivo poderia ser concretizado?  

É importante referirmos que, em relação às acusações contra Ígor Racthin e Lev Lakshtanov, não temos acesso às peças processuais, porquanto, nem mesmo o conteúdo das informações contidas nos computadores, cartões de memória e discos foi publicado. Acreditamos que o processo chegará a julgamento e que a substância dos “elementos de prova” sobre o cometimento dos crimes de que são acusados provavelmente virá ao conhecimento público. Porém, é imperioso que aos cidadãos em causa não seja negado o princípio da presunção da inocência, salvo no caso de confirmada inexistência de Estado democrático e de direito em Angola.    

Muito provavelmente, como consequência da intensa campanha de russofobia deflagrada pelos inimigos da Rússia, alguns angolanos desinformados podem ser, inevitavelmente, induzidos a vincular as actividades e vontades (pessoais) de um ou dois cidadãos russos às políticas e acções do governo desse país. É pouco crível que a maioria dos angolanos desenvolva alguma desconfiança sobre um cidadão dos EUA, que viaje para Luanda como integrante da USAID ou da NED. Com certeza que não geraria nenhuma suspeita, caso as pessoas soubessem que determinado cidadão de um país europeu de visita a Angola está a serviço da Open Society

Estamos diante da consequência de um processo de condicionamento psíquico, resultante de sofisticados e intensos mecanismos de alienação, que afectando a mundividência do indivíduo é capaz de deformar o procedimento de instituições. É a nova forma de Macarthismo, em que a imagem de perigo à venda actualmente já não é o comunismo, mas sim a Rússia, ou o simples facto de alguém ser um cidadão russo. Assim como ocorre com todos os países do mundo, também existem turistas ou pesquisadores russos, com interesse em conhecer e estudar a realidade de países africanos e não só. Existem desportistas, músicos e curiosos de nacionalidade russa.    

Assim como vários ciclistas holandeses e de outros países europeus, que diversas vezes entram em Angola pela fronteira norte, provenientes de outras partes do continente, também existem na Rússia pessoas entusiastas atrás de objectivos pessoais, sem nenhum vínculo governamental. Um facto que constitui uma das necessidades básicas e um dos direitos fundamentais – o direito de ir e vir -–, pode converter-se numa vulnerabilidade, quando se é cidadão de um país com inimigos poderosos e permanentemente mal-intencionados. 

Durante o genocídio ocorrido no Ruanda em 1994, em que milhares de ruandeses de etnia tutsi, túas e hútus moderados foram assassinados por indivíduos maioritariamente de etnia hútu na decorrência da guerra civil ocorrida naquele país, em meio à tragédia, Paul Rusesabagina, cidadão ruandês de etnia hútu, à época funcionário do Hôtel des Mille Collinesem Kigali, ajudou a proteger a vida de mais de mil ruandeses tutsis, concedendo abrigo aos mesmos. A fama do ex-funcionário hoteleiro transpôs as fronteiras do Ruanda, país que, anos depois, o mesmo viria a abandonar por motivos de segurança, passando a viver nos EUA na condição de refugiado. 

Quando, em 2004, foi produzida a premiada e aclamada a obra cinematográfica Hotel Ruanda – filme baseado na façanha de Paul Rusesabagina durante o genocídio – este cidadão tornou-se uma figura mundialmente famosa. A fama de Rusesabagina despertou o ciúme e a ira de detentores do poder em Kigali. Desde então, o mesmo foi transformado num alvo a abater.    

Posteriormente exilado na Bélgica, onde exercia activismo político contra a governação de Paul Kagame, em Agosto de 2020, Rusesabagina foi convidado por um pastor para proferir uma palestra no Burundi. Após efectuar escala no Dubai, Rusesabagina embarcou num voo particular que, ao invés de o transportar para o Burundi, levou-o directamente para o Ruanda, onde foi detido e acusado de actos de terrorismo, incêndios, sequestros e assassinatos ocorridos em 2018 nesse país. Provavelmente o acto inusitado terá sido resultado de uma operação internacional do órgão de inteligência do Ruanda, a NISS, com o envolvimento da empresa de aviação a quem Rusesabagina requereu o transporte para o Burundi. Através de advogados, Rusesabagina intentou uma acção contra a companhia aérea grega por auxiliar o sequestro.    

Este paralelismo com o caso dos cidadãos russos detidos em Angola serve para ilustrar o quanto, em contexto de guerra de espectro total, inclusive a ingenuidade de pessoas comuns pode constituir-se numa arma de arremesso contra o adversário, ou numa ferramenta para o alcance de objectivos políticos.

A edição online do Novo Jornal de 30/05/2025 regista em letras garrafais que “João Lourenço volta a Moscovo ainda em 2025 para reforçar cooperação com a Rússia”. Segundo a mesma fonte, citando o então Embaixador da Federação Russa em Angola, Vladmir Tararov, a visita do Presidente angolano “à Rússia deve acontecer durante este ano e foi já confirmada a nível dos canais diplomáticos”. 

Diante dos factos analisados, uma questão inevitável se impõe: será que a detenção e as acusações que recaem contra os cidadãos Ígor Racthin e Lev Lakshtanov faz parte de um estratagema que visa inviabilizar a deslocação do chefe de Estado angolano à Rússia?

A quem interessa a deterioração das relações históricas entre Angola e a Rússia? 

20 de Agosto de 2025

*Analista de Relações Internacionais

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR