O PROGRAMA DOS EUA PARA A DEMOCRACIA EM ANGOLA E A REALIDADE ASSUSTADORA

Desde 1857 até 2024, os EUA têm sido governados única e exclusivamente pelo Partido Democrata ou pelo Partido Republicano. Ou seja, em 167 anos, num país que actualmente possui uma população de mais de 300 milhões de habitantes, apenas dois partidos têm assumido o poder num esquema quase de revezamento temporal…

POR ORLANDO VICTOR MUHONGO

A Embaixada dos Estados Unidos da América (EUA) em Angola procedeu, na segunda-feira, 05 de Junho de 2024, ao lançamento de um programa denominado “POPRID – Partidos Políticos para uma Democracia Resiliente e Inclusiva”. A referida iniciativa está orçada em dez milhões de dólares e será financiada pela USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional).

Esta notícia foi divulgada por diversos veículos de imprensa e circulou de forma massiva nas redes sociais. Enquanto a larga maioria dos angolanos a encarou com indiferença e um número residual de pessoas expressou entusiasmo pelo “advento da democracia Yankee” para Angola, uma enorme preocupação assola um ciclo restrito de amigos.

De acordo com a Encarregada de Negócios da Embaixada dos EUA, o “programa enquadra-se no pilar da boa governação, que consiste em apoiar os parceiros angolanos no desenvolvimento de instrumentos necessários para o reforço contínuo das instituições democráticas no país”. A diplomata estadunidense fundamentou o referido enquadramento exaltando o que considera ser os “duzentos e quarenta e oito (248) anos de história democrática” dos EUA. 

A discussão de “questões relevantes sobre Angola fora do espaço parlamentar”; o “fortalecimento das instituições democráticas que contribuem para o bem-estar e a prosperidade dos cidadãos”; o “diálogo interpartidário específico de cada país”; o “diálogo interpartidário regional”; a “assistência directa ao esforço dos partidos políticos”; são algumas engrenagens a que se propõe o propalado POPRID. Trata-se de uma acção que visa um alcance regional, dirigida a outros países além de Angola, nomeadamente, Namíbia, Botswana, Eswatini, Lesoto, Malawi e África do Sul, sendo que, nas palavras da Encarregada de Negócios, tal programa “demonstra o empenho evidente do governo dos EUA em apoiar partidos políticos fortes e vibrantes que, enquanto instituições, são os pilares de um sistema democrático bem-sucedido”. 

O confuso quadro que o comunicado espelha como propósito do referido programa para com os partidos políticos de Angola e da região Austral de África é facilmente entendido num contexto político e social de forças partidárias “aideológicas”. Um punhado de organizações nacionais que se propõem actuar politicamente nas sociedades em que estão inseridas, desprovidas de princípios teóricos, sem bases programáticas nem orientação-chave para as áreas fundamentais de um país. 

Do ponto de vista concreto, as elucubrações do que se pretende que venha a ser o “POPRID” são idealizadas apenas num cenário de partidos políticos sem ideologia, que dirigem governos (ou ambicionam ser governo) devotos e espectadores dos milagres que a mão invisível do mercado e do investimento estrangeiro pode fazer em substituição do Estado (desde que sobre um pouquinho de Estado para custear as regalias e o classismo de uma pequena elite).

Porém, caso o referido programa norte-americano tenha a capacidade de suprimir as diferenças entre os diversos partidos de Angola e da África Austral, ao ponto de anular os fundamentos da competição política, então estaremos diante de um processo de invenção de um novo modelo de monopartidarismo. Mas, como nos referimos aos EUA, este cenário, face às neblinas anunciadas pelo “POPRID”, projecta possibilidades extremamente assustadoras.

Para além da enorme dificuldade que me assola, de entender o que venha a ser uma “Democracia Resiliente”, um oceano de perplexidade desafia a minha compreensão diante da insistente ousadia norte-americana em vender a reedição do “destino manifesto” à escala global, qual missionários enviados por Deus para a difícil missão de pregar a democracia aos incivilizados do fim do mundo. Mas quais são realmente os frutos dos orgulhosos 200 anos da democracia dos EUA?

Muito além dos ‘achismos’ e das opiniões próprias, os princípios da escola de que somos adeptos, o materialismo dialético e histórico, impõe-nos o rigor dos factos como caminho para o encontro das respostas sobre a legitimidade e capacidade dos EUA de distribuir democracia em Angola e na África Austral.

Desde 1857 até 2024, os EUA têm sido governados única e exclusivamente pelo Partido Democrata ou pelo Partido Republicano. Ou seja, em 167 anos, num país que actualmente possui uma população de mais de 300 milhões de habitantes, apenas dois partidos têm assumido o poder num esquema quase de revezamento temporal.

O que oficialmente é designado por “sistema político”, nos EUA, é na verdade uma teia assombrosa de tráfico de influências formalmente designado por Lobbying. Por via do Lobbying, interesses privados de grupos organizados influenciam as tomadas de decisão do governo, a aprovação ou não de leis no congresso, o sentido e a tendência da política monetária e financeira, a política externa do país e toda a sorte de medidas públicas e privadas que afectam a vida dos cidadãos e das instituições. De acordo com Brown V., da Universidade do Minnesota, em 2016 existiam em Washington, DC, cerca de oitenta mil lobistas. Neste universo podemos citar o poderosíssimo lobby judeu, representado pela AIPAC, o lobby da indústria armamentista, o lobby da indústria farmacêutica, etc. Ou seja, para além de um sistema político em que o cidadão não vota directamente em quem ele entende que deve governar o país (o presidente da república), nos EUA, é uma engrenagem de interesses privados que, de facto,governa. E isto é parte da cultura política deste país.

Se a nível interno a orgulhosa democracia de 248 anos assassinou quatro presidentes em exercício de funções e feriu outros dois em tentativas de assassinato, a nível externo, os EUA investiram e têm investido, ao longo de várias décadas, milhões de dólares na desestabilização de diversos países do mundo, actuando muitas vezes na destituição de chefes de Estado eleitos democraticamente. 

No quadro da “tarefa messiânica de expandir a sua democracia ao resto do mundo”, as diversas agências dos EUA, tais como USAID, NED, NDI, IRI e outras, têm sido acusadas de financiar ONG ou personagens políticas com vista à desestabilização de diversos países do mundo governados por políticos que não atendem os interesses norte-americanos. Diversas fontes citam a actuação destas agências em países como Cuba, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia, Brasil e Haiti (Moldiz Mercado, 2014; Beeton, 2014; Telesur TV, 2016). Em 2019, o então Secretário-Geral do ANC, Gwede Mantashe, acusou a embaixada dos EUA na África do Sul de preparar jovens sul-africanos para derrubarem o governo daquele país.

Em Fevereiro de 2024, o “tribunal da imprensa ocidental” sentenciou aos quatro cantos do planeta a culpa do Presidente russo, Vladmir Putin, pela morte de Alexei Navalny, convertido por esta mesma máquina mediática no maior político da oposição na Rússia e motivo de insónias do “ditador Putin”. Como era de esperar, a certeza absoluta da imprensa ocidental sobre o envolvimento do Presidente Putin na morte de Navalny foi imediatamente replicada por diversos veículos de comunicação no mundo, absorvida pelo mesmo público e profissionais americanizados da periferia do mundo, inclusive em Angola. Depois da divulgação, pelo portal Wikileaks, de informações que referem que as actividades de Alexei Navalny eram apoiadas pela agência dos EUA National Endowment for Democracy (NED), não restou à imprensa ocidental outra solução se não divulgar alegadas conclusões da inteligência norte-americana em como o Presidente da Rússia não tinha nenhuma relação com a morte de Navalny. No entanto, aos replicadores e reprodutores da periferia do mundo não interessou o desmentido, pois, para estes, bastava a pseudo-verdade que agrada à “democracia americana”. Pois, é este o procedimento “padrão”. 

A democracia dos EUA é a mesma que administra o campo de prisões ilegais de Guantánamo, onde seres humanos são mantidos em cativeiro por um Estado que se diz democrático e de direito, mas que priva a liberdade de cidadãos detidos à margem das leis americanas e do direito internacional. Segundo o relator especial da ONU, a democracia que se orgulha dos seus 248 anos detém indefinidamente em Guantánamo, há 21 anos, 780 homens e rapazes muçulmanos, violando os direitos fundamentais de centenas de pessoas, detidas sem culpa formada, sem direito a defesa, sem julgamento.

A democracia dos EUA é a mesma que “vive sedenta” do sangue, do corpo e a vida de Julian Assange, um jornalista detido injustamente e perseguido por ter publicado provas das atrocidades cometidas pelo exército norte-americano. É a mesma democracia que fornece o armamento e financiamento com que o regime sionista de Israel tem massacrado civis e crianças palestinas ao longo de décadas.

Aliás, o Procurador do TPI solicitou mandados de captura contra dois dos principais responsáveis pelo genocídio israelita contra a população da Palestina. Em resposta, a Câmara dos Representantes (deputados dos EUA) aprovou uma Lei que visa sancionar o TPI pela “ousadia” do seu procurador em tentar levar à justiça os responsáveis pela chacina em Gaza. 

A democracia dos EUA é a mesma que, em Junho de 2024, impediu o cidadão norte-americano, Scott Ritter, de embarcar no seu voo para a Turquia, onde deveria fazer escala com destino a São Petersburgo, no intuito de participar no fórum anual que se realiza nesta cidade russa. As instituições do país que ostenta orgulhosamente os dois séculos de democracia, receberam o passaporte de Ritter e, em pleno aeroporto, atropelaram os seus direitos e a sua liberdade, sem nenhum mandado judicial, sem nenhuma acusação e sem culpa formada. 

Podíamos citar uma infinidade de exemplos, que vão desde os milhares de mortos, feridos e deslocados causados pela missão de “expansão da democracia americana” no Iraque, na Líbia, no Afeganistão e na Síria. Por incrível que possa parecer, os exemplos referidos são insuficientes para o esclarecimento de uma larga franja da sociedade civil angolana, profundamente afectada por décadas de acção do softpower norte-americano através do consumo da cultura Pop e de décadas de processo de formatação mental operado pela imprensa ocidental. É esta franja da sociedade civil angolana, da qual fazem parte políticos, governantes, profissionais da comunicação social, activistas e cidadãos comuns, devota da doutrina do “excepcionalismo americano”, que permite que o governo dos EUA tenha toda a tranquilidade de implementar uma iniciativa como o propalado “POPRID”, porque por cá a adesão é garantida. 

Por mais que aconteçam infinitas repetições da história, por mais que as placas tectónicas da geografia política do mundo se movimentem a favor da emancipação dos oprimidos, pouco importa! Em determinados lugares da terra, ainda existem sociedades aptas para a subordinação. É esta realidade cruel que assusta verdadeiramente.      

Luanda, 07 de Junho de 2024.

One Comment
  1. Até a pontuação está certíssima. Muito bem
    Orgulho…

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