LIÇÕES DO NEPAL

O que se projecta, até agora, é que a arte de protestar vai continuar a evoluir, adaptando-se às tecnologias disponíveis, aos contextos políticos locais e às aspirações das novas gerações.

EDGAR BARROSO*

Imagina-te lá por um momento como um(a) revolucionário(a) no século 19. Acordas, pões o teu melhor fato, pegas no megafone mais potente possível e sais para as ruas gritando palavras de ordem até ficar rouco(a). Com muita sorte, algumas dezenas de pessoas vão te ouvir. Possivelmente, naqueles tempos, um(a) orador(a) de rua alcançaria, no melhor dos cenários, apenas um par de centenas de pessoas por dia.

Agora imagina-te lá como um(a) revolucionário(a) em 2025. Acordas, ainda de pijama no teu quarto, pegas o teu smartphone, escreves um post provocativo de 280 palavras, adicionas um emoji de punho levantado (do tipo “povo no poder”) e, em questão de minutos, meio mundo começa a debater a tua ideia. Afinal, hoje em dia uma única publicação pode alcançar milhões de pessoas em poucas horas. Esse é um alcance milhares (ou milhões) de vezes superior aos protestos do século 19. Bom, pelo menos até um outro post qualquer de qualquer outra pessoa desviar a atenção do teu público-alvo sobre o teu post. Ou o (todo-poderoso) algoritmo lixar o teu engajamento.

Bem-vindos ao estranho e maravilhoso mundo dos protestos do século 21, onde a revolução acontece tanto na rua quanto nas redes sociais, e onde um post pode derrubar um governo disfuncional mais rapidamente do que mil barricadas do século 19.

A revolução digital dos descontentes

Os protestos públicos no século 19 e 20 seguiam um modelo clássico de mobilização: estruturas hierárquicas, lideranças carismáticas centralizadas e repertórios de acção previsíveis. Eram como um show de música clássica, com um maestro no centro, uma orquestra coordenada e uma plateia disciplinada. No século 21, os protestos seguem uma lógica aleatória: são descentralizados, improvisados e altamente adaptativos. São como um show de jazz experimental, onde toda a gente parece estar a tocar de qualquer maneira mas, surpreendentemente, a música ainda faz sentido.

Estava a ver, na internet, que 73% dos protestos contemporâneos começam online, comparados com apenas 12% na década de 1990. Mais fascinante ainda, 68% dos movimentos de protesto actuais são híbridos, combinando tácticas digitais e físicas de forma simultânea. Reparem só para o que torna tudo isso ainda mais interessante: pela primeira vez na história, um jovem de 25 anos com um smartphone em Maputo, pode inspirar-se num protesto acontecido em Hong Kong, adaptar as tácticas usadas num protesto acontecido no Chile, e coordenar uma manifestação usando estratégias que aprendeu vendo vídeos no YouTube sobre a Primavera Árabe. É como ter acesso a uma biblioteca universal de descontentamento, disponível 24 horas por dia.

Se há um lugar onde protestar se tornou um lugar comum é… África. Com 77% da população abaixo dos 35 anos, e uma penetração de telefonia móvel a crescer exponencialmente, o continente transformou-se numa fábrica de criatividade revolucionária. É uma combinação imprevisível de imensos exércitos de jovens criativos, conectados digitalmente, economicamente frustrados – com cerca de 60% de desemprego juvenil, segundo a Organização Internacional do Trabalho – e, de forma crescente, politicamente conscientes.

Há dias estava a ler sobre o movimento Y’en a Marre no Senegal, um grupo de jovens que conseguiu parar uma alteração constitucional usando… música Rap! Isso mesmo, derrotaram uma tentativa de golpe constitucional com beats e rimas. Imaginem explicar isso a um revolucionário do século 19: “Não, não precisamos de armas, temos beats”. Aqueles jovens conseguiram reduzir conceitos constitucionais complexos a refrões de 30 segundos nas suas músicas, que depois mobilizaram quase 3 milhões de jovens. Usaram o que os especialistas chamam de framing cultural: pegaram na linguagem da rua, misturaram com crítica política sofisticada e criaram narrativas que mobilizaram a consciência colectiva local.

Também li sobre o movimento #FeesMustFall na África do Sul, que começou com estudantes preocupados com propinas universitárias e acabou por se tornar num movimento contra a desigualdade racial (a mais alta do mundo), a alienação económica e o legado do apartheid. É como começar a reclamar porque o café está frio e acabar a questionar todo o sistema capitalista global. Resultado: quase dois milhões de estudantes mobilizados em 26 universidades sul-africanas.

O segredo africano parece ser a capacidade de misturar tradição com inovação. Os tambores tradicionais encontram beats electrónicos, danças ancestrais viralizam no TikTok, e provérbios locais tornam-se hashtags globais. É uma alquimia cultural que transformou o protesto numa forma de entretenimento político. Muito criativo.

O paradoxo moçambicano

E aqui chegamos ao nosso querido Moçambique, país que tem todos os ingredientes para ser um permanente barril de pólvora. Olhemos para os factos: também temos uma população predominantemente jovem, com crescente penetração digital, sofrendo imensos desafios e dificuldades, passando inúmeras necessidades e cheios de testosterona. Teoricamente, deveríamos estar a produzir e a exportar técnicas de protesto para o resto do mundo. Em vez disso, e como dizem alguns estudiosos na área, os nossos protestos têm sido – tirando os últimos protestos pós-eleitorais – como aqueles filmes de grande orçamento mas com um enredo super fraco. Em suma, temos muito potencial e uma execução inconsistente.

Por outras palavras, padecemos de alta capacidade teórica e de baixa eficácia prática. Os protestos moçambicanos têm sofrido do que eu chamaria de “síndroma de Maputo”: começam fortes na capital, fazem muito barulho, geram algumas manchetes e, depois… evaporam-se como qualquer cacimba matinal. Li algures que os protestos em Moçambique duram uns 4 ou 5 dias, no máximo (colocando em banho-maria as recentes manifestações pós-eleitorais); a média africana é de uns 23 dias seguidos. Parte dessa lógica é que ainda estamos presos ao modelo “protesto 1.0”: muita energia, pouca estratégia, coordenação limitada, e uma tendência preocupante de esperar que alguém – que esperamos ser muito mais do que nós mesmos – tome a liderança. É como tentar jogar futebol contemporâneo (tipo a Champions League) com tácticas dos anos 1980, que podem até funcionar contra equipas fracas, mas que contra adversários organizados, não vai longe.

As manifestações do Nepal

Aqui entra a nossa lição mais importante. O Nepal, um país encravado entre dois países gigantes (a China e a Índia), conseguiu fazer, historicamente, aquilo que muitos países africanos ainda sonham: transformar protestos em mudanças constitucionais reais e passíveis de reformulação a qualquer momento. Essa é, a meu ver, a significação material do chavão que diz “a soberania reside no povo”. Para esse específico fim, os nepaleses descobriram o segredo que muitos movimentos sociais africanos ainda procuram, que é o da sustentabilidade temporal. Em vez de protestos-relâmpago que aparecem e desaparecem como trovoadas de verão, construíram movimentos que duraram décadas, atravessaram governos e, finalmente, conseguiram reescrever as regras do jogo.

Com efeito, se analisarmos com a devida atenção e seriedade, o Nepal oferece-nos uma masterclass em sustentabilidade de movimentos sociais. Essa é uma cena que ainda não se começou a falar com a devida propriedade, nas análises que nos últimos dias tenho visto sobre a emergência dos protestos naquele país. A história política do Nepal, tal como a de Moçambique, é marcada por ciclos de protestos e mobilizações populares que transformaram profundamente o país desde a década de 1950, com o derrube de um regime autocrático. Depois seguiu-se uma guerra civil desde os finais da década de 1990 até a primeira metade dos anos 2000, a abolição da monarquia em 2008 (instituindo a actual república) e um ciclo recorrente de protestos até estas últimas manifestações de há dias. 

Qual foi o truque? Segundo o que ando a ler, foram coalizões improváveis. Eles conseguiram juntar jovens comunistas com jovens democratas, jovens hinduístas com jovens budistas, jovens rurais e jovens urbanos, todos unidos por uma narrativa simples mas, muito poderosa: “Queremos decidir o nosso próprio futuro”. Há a circular pelas redes sociais um discurso poderosíssimo de um jovem de 16 anos que, pelo que se diz, atiçou a chama final que despoletou a revolução juvenil naquele país.

Não sei qual vai ser o aftermath da actual revolução no Nepal. Naturalmente, não sou apologista dos rumos violentos que os protestos tomaram por lá (especialmente a queima de edifícios estatais e as sevícias aos governantes e suas respectivas famílias). Entretanto, o que se deve sempre reter é que o protesto/manifestação é uma prerrogativa constitucional de qualquer cidadão, feita sempre dentro dos limites que a própria constituição e demais leis subsidiárias impõem. E que sempre deve ser feita de forma pacífica e criativa. No entanto, reparei que as causas daquele furor foram tanto estruturais (desigualdades sociais, falta de perspectivas para a juventude, privações relativas e ressentimentos) quanto circunstanciais (desligamento das redes sociais pelo governo local). E houve excesso de zelo por parte das autoridades locais, que tornaram ainda mais explosivas e incendiárias as manifestações populares. Temos vivido isso tudo em Moçambique. 

Lições para Moçambique

Então, o que é que os pacíficos revolucionários moçambicanos podem aprender com as dinâmicas globais de protestos? Acima de tudo, que protestar eficazmente no século 21 – estou a falar de protestos legítimos aqui, como a prerrogativa de protestar contra quem impede a nossa discriccionariedade de comprar bebida em qualquer dia do final de semana, ou contra quem usurpa a nossa inalienável soberania popular de efectivar reformas constitucionais e a aloca, com pompa e circunstância, a uma elite política cooptada que não nos representa em nada – é como gerir uma startup: precisa-se de visão, de estratégia, de execução e de capacidade de se readaptar tudo quando as coisas não correrem conforme o esperado. Em específico:

1. Construir pontes, não muros – Os protestos mais eficazes são aqueles que conseguem unir grupos que normalmente se confrontam (ou que não se engolem, ou que não se relacionam). É como organizar um churrasco onde vegetarianos e carnívoros encontram algo em comum; é difícil, mas não impossível… sobretudo se o foco estiver no que os une (neste caso, provavelmente comprar bebida aos domingos onde nos apetece). Lol…

2. Pensamento de longo prazo – Protestos não são corridas rápidas de 100 metros, são maratonas de dezenas de quilómetros. Requer treino, estratégia, e a capacidade de manter o ritmo quando toda a gente quer desistir. É como fazer uma novela, precisa de manter o interesse do público ao longo de muitos episódios, não apenas no capítulo da estreia. Nas minhas leituras, dei-me de caras com um dado interessante: movimentos protestantes que duram mais de 2 anos têm muito mais probabilidade de conseguir mudanças estruturais (como é o caso dos nepaleses). Assim sendo, é preciso desenvolver o que se designa de “resistência estratégica” – a capacidade de manter pressão constante mesmo quando a atenção mediática desaparece.

3. Narrativas que colam – A melhor causa do mundo não vai a lado nenhum se ninguém conseguir explicá-la numa frase. Os movimentos mais eficazes são aqueles com slogans que qualquer vovó consegue repetir ou que qualquer miúdo de 12 anos consegue entender. A fórmula parece simples: complexidade nas ideias, simplicidade na comunicação. Cenas tipo “este país é nosso, salve Moçambique”. 

4. A tecnologia é uma ferramenta, não a solução – Um smartphone não faz sozinho a revolução, da mesma forma que ter uma conta no Instagram ou no Facebook não faz de ninguém um influencer. A tecnologia amplifica boas ideias, mas não substitui organização, estratégia e trabalho duro de base.

O futuro das manifestações

Novamente, protestos – ou manifestações – são actos legais e legítimos de exercício de cidadania (especialmente quando todas as outras formas falham ou são coarctadas). E, neste texto, eu estou a conversar com os indignados da pátria (potenciais manifestantes), não com os representantes ou os guardiões do sistema. Olhando para o futuro, os protestos vão provavelmente tornar-se ainda mais híbridos, mais criativos e mais imprevisíveis. Possivelmente mais violentos, se a única solução para as suas causas estruturais for, ainda, a ditadura das balas verdadeiras, o império da força dos músculos gendarmes e, muito mais pernicioso, a politização da justiça contra a justeza e a legitimidade da(s) causa(s) manifestante(s).

Possivelmente veremos muito mais movimentos sociais que começam pela internet. Ou talvez não, já que o futuro tem sempre aquele hábito irritante de ser diferente das nossas previsões. O que se projecta, até agora, é que a arte de protestar vai continuar a evoluir, adaptando-se às tecnologias disponíveis, aos contextos políticos locais e às aspirações das novas gerações. Em Moçambique, isso significa que temos – como indignados crónicos (hehehehehehe) – uma janela de oportunidade única: aprender com os erros e os sucessos dos outros em outras latitudes, adaptar as melhores práticas ao nosso contexto e, quem sabe, criar algo completamente novo e diferente das opressões, dos abusos e das privações de sempre.

Porquê? Porque, no fim do dia, protestos legítimos (e eficazes) não são sobre gritar mais alto, sobre bater panelas ou sobre destruir mais cenas do que os outros. São, a meu humilde ver, sobre encontrar a frequência certa para que a mensagem ressoe, espalhe-se e, eventualmente, mude alguma coisa, especialmente quando se conseguir transformar as nossas indignações e frustrações individuais numa acção colectiva inteligente para mudar o que já não presta para todos nós.

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