Mais de seis milhões de escravizados saíram de Angola entre os séculos XVI e XIX. Luanda foi o maior porto de embarque do continente, Benguela o terceiro e Cabinda o quarto. “É preciso reconhecer que existe uma história longa, de mais de quatro séculos, de sequestro, cativeiro, trabalho forçado e migrações”.
Concluímos, com esta segunda parte, a entrevista que nos foi concedida pela Dra. Mariana Candido, em que esmiúça algumas questões emergentes da conversa inicial, em particular sobre a escravatura em Angola.
Quando se refere a emergência de novos “estados, reinos” provocada pelo processo de colonização e escravização tais como novas formas de organização política, poderia contextualizar?
A expansão do comércio Atlântico e a presença portuguesa em Benguela e Luanda levou ao colapso de alguns estados, como o caso de Kakonda. No século XVII, Kakonda era um sobado poderoso ao longo do rio Lutira, no noroeste de Benguela, que controlava um vasto território e as redes comerciais oriundas do planalto. O soba de Kakonda também controlava sobetas, como Bongo e Anaquibenga. Depois de uma série de conflitos com as forças portuguesas, na metade do século XVII, o soba Kakonda foi derrotado e forçado a assinar um contrato de vassalagem (1671). Um presídio (uma fortaleza/centro administrativo e comercial) foi erguida no seu território, com o nome de Caconda. Isso levou a uma série de ondas migratórias no interior da região entre o que hoje é o Sumbe e o Lobito. Analisei isso com detalhes no meu livro An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland, publicado em 2013 pela Cambridge University Press.
No processo de conflito e tentativa de ocupação do território entre 1670-1690, centenas de súditos de Kakonda foram capturados, mortos e escravizados. Os sobetas Bongo e Anaquibenga, por exemplo, desaparecem da documentação portuguesa depois desses conflitos no final do século XVII. Outros líderes políticos surgiram, como, por exemplo, Kambuinda e Kabunda, que organizaram ataques a fortaleza de Caconda diversas vezes entre 1700-1720. Mas eles não parecem ter sobrevivido por muito tempo. Frente a resistência da população local, a fortaleza da Caconda foi abandonada na década de 1730. Em 1769, o governador Francisco Sousa Coutinho ordenou a criação de uma nova Caconda mais ao sul, nas terras do soba Katala, no território da Hanya. Uma nova fortaleza foi erguida, entre os rios Sucula e Cabala, onde hoje ainda existe a cidade de Caconda. O soba de Katala desapareceu da documentação, o que sugere a destruição desse sobado, assim como havia acontecido com Kakonda, Bonga e Anaquibenga anteriormente durante a segunda metade do século XVII. O estabelecimento da nova fortaleza da Caconda levou ao fortalecimento das redes comerciais com os sobados do planalto de Benguela, por exemplo, Wambu (Huambo).
Kakonda não foi o único estado, sobado, a desaparecer no século XVII, assim como Katala não foi o único sobado a colapsar no século XVIII. Kitomata/Kitumata foi descrito em várias fontes portuguesas como um estado forte, centralizado, e com um exército poderoso em 1610-1620. António Cadornega descreve uma pluralidade política ao redor de Benguela durante meados do século XVII que parece ter desaparecido no século XVIII. Talvez esses sobados se tenham unificado, talvez os líderes e seus súditos tenham migrado, não sabemos ao certo o que aconteceu, mas está claro que havia vários sobas ao longo do litoral no século XVII e eles desapareceram ao longo das décadas. No começo do século XIX, só há menção aos Mundombes na região que hoje é chamada de Dombe Grande, mas na documentação do século XVII, sobas Mundombes ocupavam o litoral desde o que hoje é o Lobito até a região da Equimina. Ou seja, os Mundombes também perderam território ao longo de três séculos de contacto com os portugueses. E precisamos reconhecer essa história de desapropriação de terras ao longo dos séculos.
Os números que evoca nas suas diferentes obras relativamente ao histórico e a dimensão dos portos da escravidão em África em geral e em Angola em particular, são impressionantes, mas também existem traços importantes relativos as crianças e mulheres?
Sobre os números do comércio de seres humanos a minha investigação é sustentada em dados colhidos no https://www.slavevoyages.org/ que está disponível online, gratuitamente. Inclusive a informação está disponível em português. Quando eu era doutoranda, colhi muitos dados que foram incorporados nessa base de dados.
Em 2017, o Museu Nacional da Escravatura, em Luanda, publicou um volume que eu organizei com o Carlos Liberato (Universidade Federal do Sergipe), Paul Lovejoy (York University) e Renée Soulodre-La France (University of Western Ontario). Nesse livro, Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos nós reunimos vários pesquisadores especialistas no mundo Atlântico. Na introdução do volume, eu, o Carlos Liberato, Paul Lovejoy e Renée Soulodre-La France analisamos o volume do tráfico de seres humanos e o seu impacto na região que hoje chamamos Angola.
A introdução desse livro revela, por exemplo, o grande número de crianças embarcadas nos portos de Luanda e Benguela. Um aspecto que precisa ser lembrado aos angolanos hoje em dia é que Benguela era um porto nos séculos XVII, XVIII e até o final do século XIX. Lobito só começou a ser usado como porto no começo do século XX, em 1903, com a construção do Caminho de Ferro de Benguela. Até 1903, o desembarque de tropas e mercadorias, e o embarque de seres humanos, cera, marfim, etc.; era no embarcadouro que existia em frente da alfândega de Benguela, hoje o edifício do Museu Nacional de Antropologia. Benguela precisa ser reconhecida como porto Atlântico.
Em que medida esse processo histórico de escravização afectou (moldou) a Angola hodierna, pós-colonial (demográfico, território, terras, estrutura social e política)?
Segundo a base de dados Slave Voyages e a informação disponível no Atlas of the Transatlantic Slave Trade (New Haven: Yale University Press, 2010), p. 10, organizado pelo David Eltis e o David Richardson, os dois historiadores que organizaram a base de dados Slave Voyages, três dos maiores portos de embarque de africanos escravizados estavam no que hoje é território angolano. E esses portos são Luanda, Benguela e Cabinda. Mais seres humanos foram vendidos e deportados do porto de Luanda do que de qualquer outra localidade no continente africano. Pelo menos 2.826.000 homens, mulheres e crianças foram embarcados em navios transatlânticos no porto de Luanda, entre 1501-1867.
O segundo maior porto é Ouidah, no Benin, que viu um estimado número de 1.004.000 de seres humanos serem vendidos.
Benguela foi o terceiro maior porto, com um número estimado de 764.000 pessoas vendidas como escravizadas. Cabinda é considerado o quarto maior porto de escravização, com, pelo menos, 753.000 cativos exportados. Depois de Cabinda, o porto de Bonny, na Nigéria, ocupada a posição do quinto maior porto (672.000 indivíduos). Ou seja, os números da perda demográfica são enormes para o que hoje chamamos Angola.
Os especialistas calculam que mais de 5.600.000 dos 12.5 milhões de africanos escravizados saírem dos portos de Luanda, Benguela, Cabinda, Malembo (549.000), sem contar os embarques ilegais em localidades ao sul de Benguela, como Cuio, Equimina, Baía Farta, e nos pequenos portos entre Luanda e Benguela. É importante lembrar que estámos a falar de mais de 5 milhões de jovens saudáveis, no auge da vida produtiva.
Isso é um número gigantesco que afetou não só a demografia, mas a produção econômica, a agricultura, a capacidade de defesa dos sobados, além de ter transformado ideias de justiça, do certo e do errado, com a expansão da escravização como método de punição para delitos banais. A perda demográfica também transformou a instituição do casamento, por exemplo, com um número maior de mulheres disponíveis, permitindo que mais homens, e não somente os muitos ricos e poderosos, acumulassem várias esposas. A expansão do comércio transatlântico favoreceu a consolidação política de estados militares poderosos, como Mbailundu, que enriqueciam do seu envolvimento no mundo Atlântico, e levaram ao colapso de estados menores, como o sobado de Kakonda, que resistiu as razias.
O comércio Atlântico introduziu a mandioca e o milho e transformou a alimentação local. A mandioca e milho foram introduzidos pelos comerciantes transatlânticos, ou sejam não eram consumidas no que hoje chamamos Angola antes de 1550. As populações locais comiam o massango e a massambala, mas não a fuba ou o bombo. Ou seja, o impacto do tráfico de seres humanos escravizados não afectou somente aqueles que foram vendidos como cativos. Afectou também às famílias que perderam entes queridos, as populações que se viram forçadas a abandonar as suas terras para sobreviver as razias, afectou inclusive sobas poderosos que foram obrigados a assinar tratados de vassalagem com os portugueses para sobreviver.
Relatos de viajantes que visitaram o planalto de Benguela na segunda metade do século XIX, como o Francisco da Silva Porto, o Laslo Magyar, ou ainda o David Livingstone, descrevem aldeias despovoadas, com campos de cultivo abandonados ou destruídos pelos exércitos escravistas, populações de refugiados ou deslocados em busca de proteção. Ou seja, é preciso reconhecer que existe uma história longa, de mais de quatro séculos, de sequestro, cativeiro, trabalho forçado e migrações no que chamados de Angola hoje.
Mariana P. Candido, Associate Professor Department of History Emory University
Bowden Hall – 561 S. Kilgo St. – Atlanta, GA 30322
U.S.A.
Bibliografia
Editor, African Economic History
https://uwpress.wisc.edu/journals/journals/aeh.html
Wealth, Land, and Property in Angola. A History of Dispossession, Slavery and Inequality (Cambridge University Press, 2022)
African Women in the Atlantic World, co-edited with Adam Jones (James Currey, 2019)
*Essa tabela está inserida na página 90 do David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade (New Haven: Yale University Press, 2010).
A Dra. Mariana Cândido co-editou com colegas afins Laços Atlânticos. A introdução do referido livro tem várias tabelas que podem ser consultadas. Segundo Mariana Candido, o volume está esgotado, ocorrendo conversações para uma nova tiragem com o concurso do Museu Nacional da Escravatura.
Nesta segunda parte foi mantida a grafia original das respostas da autora, Dra. Mariana Candido.