
Bastam alguns minutos de caminhada pela orla de Benguela, para perceber que o sal não é apenas um condimento: é identidade, sustento e história. Nos tanques rasos, por gerações, a argila local tem selado o leito das salinas, garantindo um produto puro, de baixo impacto ambiental e preço acessível. Mas, nos últimos meses, um novo
protagonista apareceu: lonas plásticas importadas, sedutoras pela promessa de maior rendimento produtivo e menor esforço manual. Vale a pena trocar décadas de tradição, por uma solução que pode custar caro à saúde humana e ao ecossistema?
O que diz a ciência
Um parecer técnico divulgado em 20 de Junho de 2025 analisou, lado a lado, a produção com argila natural e a com revestimento sintético nas salinas de Benguela. O documento concluiu, que a argila oferece “segurança alimentar alta” e praticamente nenhum risco toxicológico, enquanto a da lona, submetida ao sol tropical, pode libertar bisfenol A (BPA), ftalatos e microplásticos – contaminantes invisíveis que passam directo pelo paladar do consumidor.
Os números internacionais reforçam o alerta. Estudos em sais de mesa africanos já encontraram até 1,33 partículas de microplástico por quilo (pubmed.ncbi.nlm.nih.gov), e trabalhos de 2024 e 2025 revelam concentrações superiores a 300 partículas/kg na Ásia (pubmed.ncbi.nlm.nih.govtandfonline.com). Quando esses fragmentos entram na cadeia alimentar, alcançam órgãos humanos como fígado, sangue e até o cérebro, segundo revisão publicada em Março deste ano, segundo o washingtonpost.com.
Tradição vs. modernização apressada
A argila não é apenas um material local e barato; ela faz parte de um modelo produtivo que garante emprego, reduz a pegada de carbono e mantém viva a cultura salineira. Já as lonas, feitas de PE, PVC ou PP, exigem importação, substituição frequente devido à degradação ultravioleta e descarte controlado – um luxo ambiental que poucas comunidades costeiras conseguem cumprir.
Do ponto de vista económico, o custo inicial da lona pode ser até três vezes maior do que o da argila, sem contar com a manutenção. E, se o sal estiver contaminado, os pequenos produtores arriscam-se a perder mercados urbanos que pagam melhor, exactamente pela reputação de pureza do “sal de Benguela”.
Risco invisível, impacto real
BPA e ftalatos são disruptores endócrinos associados a desequilíbrios hormonais e problemas reprodutivos. Os microplásticos, por sua vez, podem servir de “esponja” para outros poluentes, potencializando toxicidade. Como são partículas microscópicas, não alteram o sabor, a cor nem o cheiro do sal, o que dificulta qualquer detecção caseira. A contaminação, portanto, é silenciosa – e disseminada.
O que precisamos fazer agora
1. Proteger o método tradicional, com a argila natural, que usada com boas práticas de higiene, continua a ser a opção mais segura e sustentável;
2. Criar normas nacionais para lonas alimentares se houver interesse em modernizar, e que os materiais sejam certificados para uso alimentar e resistentes a UV;
3. Fiscalizar e educar produtores que devem receber formação técnica; consumidores, informações claras sobre a origem do sal;
4. Investir em pesquisa local, em laboratórios nacionais que podem liderar estudos sobre a transferência de contaminantes, adequando-se à realidade climática do país.
A escolha é colectiva
Ao levantar a tampa do saleiro, cada família angolana decide, sem saber, entre tradição e risco. O debate não é só dos produtores ou das autoridades sanitárias: envolve jornalistas, ambientalistas, economistas e, sobretudo, consumidores. Defender o sal de Benguela é defender o emprego local, a saúde pública e a soberania alimentar.
Benguela já provou que sabe aliar conhecimento ancestral e inovação. Mas, inovação sem ciência é aventura. E aventura, quando se trata de alimentação básica, é um luxo que não podemos pagar.
Se o seu sal nasce na argila, celebre a herança. Se vem do plástico, pergunte: vale mesmo a pena?
* Especialista em Desenvolvimento Local