COISAS QUE NÃO SE ESQUECEM (7)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

JAcQUEs TOU AQUI!

A minha página acolhe hoje a segunda parte do texto assinado pelo jornalista Manuel Rodrigues Vaz, iniciado na semana passada:

POR MANUEL RODRIGUES VAZ

Aproveitando para fazer uma resenha histórica do Kwanza Sul e das regiões limítrofes, nomeadamente a Kisama, Jacques dos Santos não deixa de lembrar algumas figuras históricas que passaram por lá nos séculos XIX e XX, como por exemplo o húngaro Ladislau Magyar, que inspirou a Ana Paula Tavares, uma das vozes principais da poesia angolana, o longo e primordial poema História de amor da princesa Ozoro e do húngaro Ladislau Magyar.

Nghéri-Hi, que quer dizer O que é que eu fiz?, subintitulado Maka da grande família, retrata de maneira tão objectiva como sintética o processo de miscigenação através da descrição de evolução de uma família que se afirma a partir de um europeu, o louletano Manuel Jorge, e de uma africana da sociedade rural e das colaterais relações que o homem vem a ter com outras africanas, daí resultando dezenas de filhos. A consequência é uma multiplicidade de irmãos e primos que, através das suas aventuras e desventuras, vão deixando também, as mais diversas descendências, mais ou menos inseridas na sociedade dominante, mais ou menos marginalizadas dessa sociedade. Refira-se, por exemplo, que o conhecido Lúcio Lara, que foi uma das personalidades mais influentes do MPLA, nos primórdios da independência, é também um dos seus descendentes.

Os Ngana sobas respeitavam-no sob a aura de “o primeiro branco” mesmo quando em flagrante desrespeito pelas suas crenças e tradições, o adotaram como um deles, desesperando quer os quimbanda e os detentores do poder do feitiço pelo lado nativo, quer os colonos e seus chefes pelos portugueses. Manuel Jorge era uma espécie de deus, um ser sobredotado, que usava a sua inteligência para decidir como um magistrado, sobre as makas mais complicadas das sanzalas, intervindo com autoridade nos mahézu dos vereditos, que eram sufragados nos plenários do sobado grande de Ndalahuso e onde ele, a partir do momento em que foi aceite, num gesto bem recebido pelos nativos, fez questão de se apresentar vestido com panos livres, deixando à mostra o tronco nu, imitando o melhor que podia os hábitos indígenas. Isto é, impôs-se pelo seu sentido de justiça, a que todos os africanos são muito sensíveis, exactamente porque eram tratados com a total ausência dela, e por se ter habituado a ser africano em África. (Não vale a pena lembrar o velho ditado). Por isso, não admira que passasse a ser conhecido como o Imperador do Libolo, que de certa maneira até o era, por toda esta postura e porque acabou por ser também um grande povoador, com uma prole de mais de seis dezenas, e que não teve vergonha de reconhecer como seus filhos, ao contrário da maior parte dos seus patrícios portugueses, que renegavam os seus rebentos. Como diz Jacques dos Santos, ele era «Um indivíduo que ganhou fama de sábio e foi procurado por pessoas importantes, de conhecimento, e que ao longo do tempo da sua vida, em diversos momentos, visitaram o Libolo. Foram seus interlocutores missionários, negociantes, militares, estudiosos e autoridades superiores que tiveram de enfrentar, em ocasiões distintas, o tom da sua voz forte e rouca assim como os seus olhos hipnotizadores».

De realçar que Manuel Jorge fazia isto quando em Portugal se pensava em África como habitada apenas por selvagens, e mesmo Eça de Queiroz, de que era um leitor de estimação, justificava uma das suas personagens de Os Maias dizendo que «O enfraquecimento dos portugueses se deveria a uma pretensa degenerescência de raça».

Pelo meio, neste seu livro, o Jacques revela-nos de vez em quando factos pouco conhecidos da História de Angola, como os acontecimentos que levaram, nos finais de 1822, a Junta Provisória do Governo da Colónia de Angola, que tinha à testa o bispo D. João Damasceno Póvoas, a rebelar-se contra a coroa portuguesa e a pensar numa alternativa de independência para o território, por influência do que aconteceu no Brasil, que um certo deputado Amaral Gourgel, de ideias independentistas, preconizava uma ligação a esta jovem nação. «Mas não aconteceu nem a independência de Angola nem a ligação com o Brasil, porque um regimento de infantaria, em alerta, opôs-se às ideias e derrubou a Junta». Também não pode esquecer as constantes acções de resistência dos habitantes do Libolo, primeiro em 1894/95 e depois nas primeiras décadas do século passado, originadas porque os colonos, «A coberto da regra de pretensa superioridade extravasavam o poder, usavam-no com abuso, sobretudo no tratamento dado aos negros. O uso da força, a atribuição dos mais humilhantes serviços, trouxe de volta a escravatura no seu exercício pleno». É preciso dizer que nesse tempo era comum menorizar os autóctones, sendo corrente a violência da ocupação portuguesa, com a extorsão de gado e de outros bens dos sobas locais, que ainda sofriam a humilhação do apoderamento das suas filhas e mulheres. «Decididamente, destino de mulher não branca em Angola era ser desgraçada, obedecer aos homens e às leis primárias dominantes». Neste caso, os autóctones também não eram isentos de culpas.

Jacques dos Santos vai ainda mais longe e mergulha no passado recente angolano, assinalando que «Parecia fazer lei, na complicada Luanda, uma orientação do tipo incumprimento total da ordem. (…) os defensores da história da capital, do seu presente, sobretudo da violenta sociedade dos dias de hoje, eram obrigados a admitir que a realidade suplantava o seu imaginário, sendo, nessa época especial, cruel demais para a cidade e os cidadãos».

Por isso, aproveita uma intervenção na Assembleia Nacional, para perguntar: «É legítimo que se pergunte, então, porque se invoca permanentemente o colonialismo para justificar as nossas desgraças? As nossas penas tornam-se ainda mais dolorosas quando se percebe que a felicidade e o bem-estar prometidos e profusamente propalados ao longo destas décadas, não estão a acontecer. (…) A mentira permanente envergonha até quem a escuta e ganha corpo com tais pronunciamentos já que é enorme o tamanho da fome que se apoderou de alguns núcleos da nossa população activa, uma fome doentia que magoa as entranhas, fere e mata».

Pela voz de Benjamim Jorge, descendente do Imperador do Libolo, ele vai ainda mais longe e aponta:

«Neste mundo, onde as ideologias se confundem e onde perdura ainda a incapacidade de se aceitar o inevitável pluralismo religioso, os cidadãos deste país devem ter o direito de saber defender e como defender que cada pessoa é dona da vontade de ter a fé no Deus em que acredita. Devem possuir a capacidade de discernir que quando duas mãos se encontram, sejam elas da cor que forem, refletem no chão uma sombra da mesma cor. E é igualmente importante que se pense nesta verdade indesmentível: cada vez mais o mundo deixará de ser caracterizado por países identificados pela exclusão que fazem das etnias e das raças, para passar a ser marcado pela coabitação de todas elas no mesmo espaço urbano e nacional, donas dos mesmos direitos e obrigações enfim, devem ter a consciência de que se torna necessária a urgente abolição dos privilégios herdados do passado». 

Enfim, como diz no prefácio a Luísa Dolbeth e Costa, esta «Não é uma obra apenas de interesse descritivo, mas muito mais profunda, em que as análises sociais e os temas abordados exigem também um nível de maturidade do leitor porque lhe expõe, até, e com grande realismo, cenas chocantes para pensar, podendo-se quase dizer, perante elas, que a realidade supera a nossa imaginação. Mais uma vez podemos reafirmar que, neste jogo de narrativa não linear, mas cheia de interrupções intencionais, não deixa de ser pertinente dizermos que devemos estar sempre atentos às constantes analepses, muitas vezes para “navegar pelos lamaçais do seu complicado passado”, e apara atingirmos a inteligibilidade dos assuntos e dos temas».

Como muito acertadamente diz o Adolfo Maria, numa nota publicada no introito, deste livro, «É uma monumental saga de família (suspeito que da família do autor), mas também é uma estória necessária da História de Angola para melhor nos entendermos como cidadãos deste País e melhor o compreender. Parabéns ao Jacques dos Santos, incansável homem da cultura angolana».

Faço também minhas, estas palavras. Tenho dito.

Manuel Vaz 

Deste modo, fecho a minha presença desta semana. Cumprimentando todos os amigos, leitores e companheiros de luta. Despeço-me com a promessa de volta no próximo domingo à hora do matabicho.

Forte da Casa, Portugal, 5 de Outubro de 2025 

P.S.- Ontem partiu para a eternidade, mais um contemporâneo. Um velho amigo natural de Calulo. Faleceu em Lisboa Rogério Lima da Veiga. Apresento as minhas condolências à família, muito particularmente ao nosso companheiro António Vieira.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR