JAcQUEs TOU AQUI!

E.T. – Nunca dei passos firmes nos caminhos da poesia. Mas sinto-me entusiasmado quando Pires Laranjeira diz“se a mulher se assume/compenetrada no ato/o olhar não assusta” e maravilhado quando João-Maria Vilanova atira com “os tambores/do sangue/vibrando/freneticamente:/vida”. O sentimento brota e torna quase impossível não lembrar a poesia.
Quem me acompanha habitualmente nesta página, terá já notado que as minhas elucubrações gravitam na vivência em Calulo, mas também na minha passagem pelo Dondo. Realmente, foi ali, onde se operou a primeira grande viragem da minha vida. Depois vieram outras, mas foi a partir da altura em que fui viver na histórica vila que virou cidade – apesar do passado que a favorece, sinto-me constrangido em classificá-la assim, depois de ter visto imagens impressionantes de um vídeo recente que retratam uma urbe miserável, com casas e ruas destroçadas, sem quaisquer condições de ser cidade, obrigando-me até a dizer, como é possível o Dondo ter chegado a isto – foi a partir dessa altura, dizia eu, que a minha vida mudou.
Corro o risco de perder créditos. De ser repetitivo, de falar das mesmas coisas, de recordar as mesmas pessoas. Abordando matéria que enche a cabeça e, quiçá, a paciência dos leitores. Tenho consciência disso. Todavia, sinto necessidade de falar dessa fase da minha vida no Dondo. Espero que entendam. É um desejo que supera o resto e não me impede de ir avante nas recordações. E é nessa onda nostálgica que me vejo hoje a lembrar figuras como o velho “Lambuzado”, cheio de brancas a enfeitarem-lhe os poucos cabelos que tinha, espessas sobrancelhas e sempre de pernas nuas dos joelhos para baixo, vestindo um surrado casaco de fardo, a acender com a vara de pavio, no entardecer de todos os dias, os candeeiros de carbureto espalhados pela zona do coreto e do mercado público, a velha e emblemática praça. Ou ainda como a do Infeliz, nome pelo qual era tratado um jovem cego que reconhecia a minha voz à distância e adivinhava a minha presença nos sítios mais imprevistos.
Na hora de lembrar faço esforços, mas não consigo acertar com o nome próprio do desgraçado nem do outro com ligações à Igreja Católica que era jocosamente tratado por “Padero Kajinjundu”.
Este teria sido sacristão nos seus tempos, porque enaltecia muito a figura do Cónego Frota, e referia-se ao clérigo, mais na época em que ainda era o padre Frota. Era inteligente, falava muito e bem, mas perdia o controlo quando a miudagem abusada – Mbambamba, Aji Mamede Paz, Fandango, Mindo, Galito, Maximiano, e entre vários outros, até a Xexa – se punha a azucrinar a sua cabeça com aqueles gritos irritantes que o exasperavam. Nunca soube o porquê, nem donde nascera o epíteto.
Padero, Kajinjundué! Porquê, então?
Vivíamos uma época em que a malta da minha idade exibia as marcas que a identificava. Eram sinais do tempo, grifados no corpo e na alma das pessoas. Pertencíamos àquele grupo de indivíduos que tinham o privilégio de ser vacinados contra a tosse convulsa, em campanhas realizadas no hospital local com um aparo de caneta, esterilizado. Deixaram para sempre uma marca feia na face externa da coxa esquerda. Era um tempo que incluía também coisas boas para mim, como a tentação de imitar meu pai em tudo. Até no orgulho de ser angolano. Inclusive na preferência da cor da sua escova de dentes, um azul clarinho, celeste, que fazia bonito contraste com o rosa da pasta dentífrica “Couraça” que ele usou durante anos seguidos. Coisas simples de menino que acabaram por me identificar.
Sempre dei atenção aos mais velhos e pela minha forma de ser, recebi deles cortesia de trato. Sendo um tipo sensível no campo afectivo, tanto soube dá-los como recebê-los respeitosamente. Foi nesse âmbito que mantive longas conversas com indivíduos considerados que, sempre que necessário, usavam fato e gravata. Destacavam-se figuras da estirpe dos Reis e Almeida (Pedro e Celestino) e também outras da qualidade do velho Camanga – o senhor João Francisco Domingues, homem de voz cordial que reverberava conhecimento, pai de senhoras finas como as donas Páscoa, Filipa e Lembinha. Havia ainda um outro dotado de palavra fácil que me convocou muitas vezes para boas conversas. Era o senhor Diogo de Carvalho Paixão, pai do Capelo, do Cecílio, da Adelaide e do Bonifácio, homem estudioso que viria a descobrir um parentesco existente entre nós.
Os passeios cimentados em frente às suas residências, transformavam-se em amplos auditórios onde, através de sábias reflexões sobre o colonialismo, eram tecidas também elogiosas considerações sobre os angolanos que integravam, naquela época difícil, o quadro do funcionalismo público do então distrito de Cambambe.
No meio dessas conversas eram citados Maurício Francisco Caetano, José António do Espírito Santo Vieira, Filipe do Amaral Galiano, Luís Van Dúnem (Lulu), Adriano Vaz Velho, Silvério Quiosa, José da Costa, António José Cardoso, o santomense Paquete, um que se chamava Paulino, e outros cujos nomes não me vêm agora à memória, funcionários colocados muito antes ou em momento mais recente nos vários serviços. Em áreas como Finanças e Contabilidade, Educação, Saúde e Assistência, CTT, Administração e Obras Públicas, eram preenchidas por trabalhadores nacionais. Desempenhavam cargos que davam notoriedade aos patrícios.
No terrível ano de 1961, essa reputação tornou-se fatal para alguns deles. Por isso, muitos saíram fugidos do Dondo, não tendo vivido o horror da fúria sanguinária dos colonos que se abateu sobre a população nativa. Foi o caso de Maurício Francisco Caetano, que não tive o privilégio de conhecer, apenas ouvi várias vezes o seu nome mencionado, numa altura em que já tinha abandonado a sua terra natal. O seu nome está hoje associado à antropologia e a outros valores da cultura nacional, tendo os seus herdeiros desempenhado um papel relevante ao perpetuarem o seu pensamento na colectânea póstuma “Os Bantu na visão de Mafrano”. A obra tem sido apreciada e já percorreu muitas cidades de Angola, sendo também conhecida em vários países. Parabéns, merecidos, à família de Maurício Francisco Caetano! Bem hajam pelo contributo que dão ao conhecimento do país.
Sem mais assunto para hoje, despeço-me dos meus amigos, parentes e leitores, com o habitual desejo de nos vermos no próximo domingo, à hora do matabicho.
Forte da Casa, Portugal, 21 de Setembro de 2025
P.S. – De entre as várias mortes assinaladas na semana, registo a partida de Guilherme Galiano (Lhelhé), antigo PCA da TV Zimbo, e do Dr. Paulo Tchipilica, antigo Ministro e Provedor da Justiça, pessoas que sempre mereceram o meu respeito e admiração. Apresento as minhas condolências às famílias enlutadas. Paz às suas almas!

