COISAS QUE NÃO SE ESQUECEM (4)

JAcQUEs TOU AQUI!

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

1 – Por mais que faça não consigo esquecer a tragédia do Elevador da Glória. Desde a semana passada, tento compreender e esclarecer dúvidas. Fiquei já a saber que foi inaugurado em 1885, que era movido a contrapeso e que, inicialmente, transportava passageiros tanto no interior como na sua cobertura. Também, que existem mais funiculares – dá-se esse nome a esse sistema ferroviário de cabos – em Lisboa e outros ascensores em Portugal, no Porto, em Braga, na Nazaré e em Leiria, por exemplo. 

Já sabia que as íngremes encostas de Lisboa obrigaram à sua instalação e que, ao longo dos anos em que funcionou, envaideceu sempre os lisboetas e os portugueses, de um modo geral. A tragédia que se abateu sobre o icónico meio de transporte, entra na página negra da história de Lisboa e vai ficar na memória de muita gente. Utilizei-o várias vezes, em viagens deliciosas que me deram o prazer de ver Lisboa do Bairro Alto à Avenida da Liberdade, na baixa Manuelina, em ângulos belos, diferentes, magníficos. Frequentei-o desde aqueles tempos em que eram raros os africanos nestas paragens, contavam-se pelos dedos das mãos. Eram tempos em que não se viam lojas de retalho para vender fuba, jindungo, quiabos e mandioca.

Nestes dias, a cidade acompanha emocionalmente o caso. Enchem-se as manchetes de rádios, jornais e televisões. Apuram-se e exigem-se responsabilidades. Procuram-se e já se condenam culpados. Os técnicos e os políticos mostram-se receosos. Todos ansiosos pelo desfecho dos inquéritos abertos, há até quem tente, apressadamente, pedidos de demissão. Mas fala-se à comunicação e enfrenta-se o público. Contudo, por muito que se faça, não se conseguirá encontrar remédio para as vidas que se perderam. As tragédias têm sempre esse lado horrível. 

A reflexão leva-me infalível e decididamente às comparações com Angola. Há diferenças gritantes no modo como se encaram e analisam as calamidades e se assumem responsabilidades. Não admira que os compromissos venham à tona, também de modo diferente.  Ficou provado uma vez mais que as coisas na Tuga piam mais fininho. Não é como na nossa banda. Aqui, as fatalidades e infortúnios que atingem as populações, não são encaradas do modo impróprio, pouco cívico, que usamos na nossa terra. Qualquer semelhança é pura coincidência. Infelizmente estou farto de saber das causas dessas diferenças. Deixemos isso para lá, falei mesmo, só por falar.

A última vez que utilizei o meio de transporte castiço, foi no princípio deste ano. Lembro-me que fazia frio e naquele final de tarde, não podia saber que realizava, provavelmente, o meu derradeiro passeio pela Calçada da Glória, do Bairro Alto à Avenida da Liberdade. Nesse dia, ia na companhia de um amigo de recente data. O Wagner, um brasileiro conhecido casualmente. Rapaz modesto, tem-me falado de coisas interessantes da sua terra, de Goiás e do Planalto Central brasileiro. Já trocamos impressões sobre o desastre e ele ficou horrorizado. É daqueles acidentes que vai ser difícil esquecer.

2 – Quando nos primeiros anos da última década do século passado e em Lisboa estavam em voga as discotecas africanas, encontrei-me com o meu amigo Cabé, no Kandando.  O homem das passadas inimitáveis, dirigia a casa de diversão nocturna onde se dançava “o melhor semba da cidade”. Estava há um tempo sob seu comando e era frequentada pelo Rei Eusébio e outros famosos. Nessa noite reencontrei a minha querida e saudosa amiga Romanita Viera Dias. O mesmo penteado de franja sobre a testa, o mesmo sorriso cativante, cigarro entre os lábios e o eterno gosto por um bom pé de dança. Relembrando Calulo, passamos a ver-nos frequentemente, em Lisboa ou em Luanda.

Naquele tempo, a vida tinha de ser levada assim, como então se levava. De certo modo, ainda hoje a levamos dessa maneira. Com os mesmos temperos. Acordar de manhã, felizes da vida ou, coisa bem diferente, pensando que éramos felizes. Desde aquela época que a situação desenhava sorrisos que ainda hoje obrigam a dizer sou feliz, quando não é nada disso que sentimos. Pelo contrário. Só tristeza pela desgraça que vamos assistindo.

As nossas conversas, constituídas por estórias e historietas eram vibrantes, de muitas emoções. Recomeçavam todos os dias com o mesmo princípio e sempre com igual fim. Nessa altura estávamos bem longe de pensarmos que viriam dias com contos de enredos bem piores. Umas estórias vergonhosas de juízes e de ministros sem classificação especial, com todos a mandarem no país, da forma como querem e lhes dá na real gana. Uma verdadeira chatice, a máquina governativa do país.

Pois bem, quando o Cabé dirigia o Kandando, numa noite daquelas, sempre bem animadas, ele que não me via há muito tempo, disse-me: “o meu miúdo, o Paulo, vai fazer o primeiro disco. Ele é muito bom”. Conversa de pai vaidoso, pensei eu ao admirar o seu convencido e largo sorriso. Falava então do Paulo Flores, o famoso, o seu filho. Mas não tardou que o sucesso do miúdo fosse real e surgisse imparável no panorama musical do país. Foi já ao som de um dos seus primeiros sucessos inseridos no álbum “Kapuete”, que vibramos na festa de pré-Carnaval de 1989 (fazíamos estas festas antes da Chá de Caxinde se instalar no Nacional Cine-Teatro). Foi nessa festa que vi o quanto eram folgazões os meus queridos e saudosos amigos Zeca Amorim e Josino José Carlos. Vestidos de verde e branco dançavam, seguidos pelo olhar orgulhoso das filhas, a Tuca, e a Paula. Lembro-me desse pormenor. Que bem dançavam eles! Honravam bem as gentes do Bairro Operário. Aconteceu na Ilha de Luanda, num Restaurante à entrada, antes do Clube Nun’Álvares.

Vou terminar, cumprimentando como habitualmente os amigos, os parentes e os leitores. Até à volta, no próximo domingo, à hora do matabicho,

Forte da Casa, Portugal, 14 de Setembro de 2025 

P.S. – A morte de Jacinto de Lemos deixou consternada a classe dos escritores angolanos. Vivia com a família, em situação difícil. A União dos Escritores Angolanos conseguiu superar as dificuldades que impediam um funeral condigno ao seu membro. Homenageou o escritor premiado. Bem-haja UEA! Os meus pêsames à família. Até sempre confrade Jacinto de Lemos, descansa em paz!

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