JAcQUEs TOU AQUI!
Será que vão passar-se mais 50 anos sobre o 11 de Novembro de 1975 e tudo permanecerá assim, sem mudarem as coisas nem sequer as moscas? Só espero que não seja apenas quando o mundo estiver todo de patas para o ar!

Ali ainda era o velho Marçal. Porque a Avenida do Brasil que agora é dos Massacres, só desembocava no elegante bairro da Caop dos tempos antigos, um pouco mais à frente. Naquele início de tarde de sábado, a tasca fervilhava, transbordante de gente. Era pouco comum tanta afluência. Na mesa da entrada, a mais pequena de todas, sentavam-se dois indivíduos. Teriam a mesma idade. Meia-idade, praí, porém bem longe da idade média! À primeira vista, dialogavam, embora só um deles falasse. O outro escutava apenas. As “bocas” unipessoais entrechocavam-se no espaço. As que vinham dos meio-idosos eram de tom grave, inseridas numa conversa meio estranha, que tinha pouco a ver com o aspecto sombrio do estabelecimento. O calado, escutava e bebia, engolia sem fazer pausas. Parecia atento, embora pouco ligado às tiradas do comparsa.
A voz forte-falante, mostrava um desajuste entre a dicção singular do seu dono e a qualidade dos desabafos. Descontextualizados, sem sentido. Seria essa, também, a opinião do que bebia, já que não dava cavaco ao sócio, nem trégua à goela. Já ia na terceira rodada. Impressionante, a capacidade de emborcar do muadiê!
Peixe ou carne? Preferiram bochechas de porco! Influência da propaganda colada numa vitrine que privilegiava entradas várias. Enrolados de chouriço e presunto, filetes de peixe-espada e torresmos para puxa-gosto. Bochechas de porco? Mas o que é isso? Que venham elas! Pareciam dizer os trejeitos labiais dos homens. Imaginavam, decerto, o sabor da iguaria quase desconhecida na banda. Onde é que o nosso tasqueiro a foi desencantar? Aquilo é comida de tugas das aldeias, não é, seguramente, dos nossos costumes. Daí, talvez, a expectativa da clientela.
Uma espécie de “prefácio” interpôs-se na conversa dos dois camaradas. Notava-se como o calado engolia cuspe da fome escondida. Sentia uma incómoda sensação. Apesar da bebida, tinha o céu da boca seco. Era notória a ansiedade. Que venham então as bochechas de porco! Que diabo, queremos sentir o prazer da primeira vez!
Apesar da falta de critério, ouvia atentamente o parceiro. Este, falava vagarosamente: “faltou muita gente na cerimónia do Jeremias. Até o Zé Domingos, que não devia faltar, desconseguiu de comparecer. Não sabem o que perderam. Uma estupenda reflexão poética”. O franzir de sobrancelhas do kamba, autorizou-o a prosseguir. Bom falante que era, não se fez rogado. Foi por ali fora, malhando forte, “andou meses a prometer que iria à apresentação, mas não foi”. E depois? Insistiam, perguntando, os olhos do outro.
“Depois, foi o que ficamos a saber. E o mais grave…”, foi dizendo o que não bebia, “…aconteceu quando o amigo quis saber, o porquê da ausência, e se desculpou, como pôde. Sem jeito nenhum”. E o que lhe disse então? Insistiu com os olhos, o amigo do copo. “Não sou assim tão famoso, e ainda por cima sou alcoólico!”. Aquelas palavras fortes, atiradas assim, sem jeito nem maneira, meio confusas, enquadravam-se perfeitamente em cenário mentiroso, próprio de tasca.
“Como assim? Mas que raio de conversa é essa?”, foi perguntando a si mesmo, mas em voz alta e em tom crítico, o fã do poeta Jeremias. “Ora essa! Não é tão desconhecido assim, e que eu saiba, nem sequer é alcoólico”. E nessa toada, foi descobrindo carecas, despejando todas as dúvidas que tinha acerca do amigo, aliviando dessa maneira as suas raivas acumuladas.
Nas restantes mesas, ouviam-se conversas de todo o tipo. De um modo geral, versavam assuntos superiores, de outro gabarito, coisas voltadas para a complicada situação do mundo e do país. Distantes, os dois amigos visados, continuavam na cansativa lengalenga.
Dizia o que falava, que nos dias que se seguiram à falha de Zé Domingos, foi tentado a descobrir razões que o levavam a enveredar por atitudes medíocres, mescladas daquelas desculpas esfarrapadas que, de tão fáceis de inventar e tão difíceis de justificar, até pareciam vindas de certos políticos! Não tinha sido há muito que pusera a circular mais uma das suas últimas teorias. Pobres, como habitualmente. Versava que quando o nosso mundo era um sítio não tão grande como o de agora, víamos as coisas numa dimensão diferente.
Fantástico! Que descoberta tão bizarra!
Justificava que os pontecos do bairro de onde a miudagem saltava à procura das bolas perdidas no calor dos trumunus de rua em que participava, eram de uma altura considerável, naquele tempo. Agora via a distância reduzida a uns poucos centímetros, não mais do que isso. Jeremias, o poeta, que já teria ouvido falar de tal fenómeno, talvez descrito de maneira mais simples, com a bagagem da sua experiência, tinha das distâncias o seu próprio pensamento. Subscreveria a tese dos políticos que era, em tudo, igual a dos cidadãos comuns. Embora distintos dos tempos antigos, os cidadãos vêm a altura dos pontecos, tal como os políticos miram a meta do poder supremo. Sempre a uma curta distância.
Não sou assim tão famoso. E ainda por cima sou alcoólico! Que besteira! O homem repetia as palavras do amigo. Que coisa ridícula! Não caberia na agenda de nenhum político. Por mais bronco que ele fosse.
As bochechas de porco chegaram, finalmente, à mesa dos dois personagens, quando de uma outra no centro da tasca, uma mesa de quatro, refira-se, surgiram, alteados, tópicos sonantes de outros assuntos.
Antes que as discussões chegassem totalmente audíveis, o duo atirou-se ao petisco, reparando que o dito cujo também era servido noutras mesas. O cheiro do refogado, mistura de alho e cebola entranhada na carne gordurenta, enchia a pequena sala de um odor fantástico. De puxar apetites. O cheiro agradava e aplaudia-se o tempero. Ouviam-se nas expressões dos que já pitavam. Puxadas pelo jindungo e pelos finos que corriam, sugeriam uma panóplia de gostos e sabores. Falava-se de tudo, inclusive de política. Hoje todo o mundo discute política, tal como se fala de futebol. Os disparates eram servidos a granel, mas ainda assim, as falas esticaram-se. Rapidamente se introduziu no cardápio o linguajar brejeiro, a típica conversa das tascas. Quebravam-se as algemas. Mas ainda não se tinha vencido o colonialismo!
Espantando os mais próximos, um velho desdentado dizia em voz rouca: “uma série de países reconheceram o Estado da Palestina. Mas fazem-se afirmações para não se esquecer o 7 de Outubro de há dois anos. Há claros desafios a Israel e aos seus aliados, mas…”. Um tipo a seu lado, comentou, “mas enquanto isso, destrói-se implacavelmente Gaza”.
Na mesa à esquerda, uma senhora emproada, de óculos escuros e com ares de doutora, não parecia muito satisfeita com o ambiente. Fez ouvir um “que horror!”, para classificar a tasca e afirmar depois, categórica: “Já não tem conta o número de vezes que Zelensky reúne, ou faz que reúne com Trump para resolver a questão da guerra da Ucrânia”. O velho desdentado olhando para as “mauanas” da senhora, aproveitou para introduzir um tema próximo das explosões e dos drones no Oriente Médio. “Pois…”, continuou a dona emproada, pegando no assunto “…marcam a actualidade bélica enquanto a própria Ucrânia discute com a Europa questões da sua sobrevivência”. O velhote comentou, entredentes, “entretanto, o Trump vai apoiando a recandidatura de Melei na Argentina”.
Ouviu-se outra voz masculina a dizer, “Bolsonaro apanhou 27 anos de cadeia. Alguns dos seus cúmplices também levaram pela medida grossa. Enquanto isso, o filho, Dudu, está em vias de perder o cargo de deputado por ausência do país”.
“E Lula fala como professor na ONU, sempre a favor do Sul Global”, aproveitou para acrescentar um que ainda não tinha dito nada.
“E aqui, entre nós, não acontece nada?”, alguém perguntou. “Como não? Agora estão em causa, umas inconsistentes estórias de brinquedos, com agentes da Cia à ilharga. Enquanto o genro do imortal Guia, gravemente doente, é levado à pressa para o Girassol. Na condição de recluso e ao arrepio do que a Lei determina. Porém, dos traficantes dos combustíveis e das drogas pesadas ninguém fala. Apetece mesmo dizer, ora bolas!”, respondendo, falou e disse um tipo baixote, nitidamente enfurecido.
Apesar da resistência de certos olhos, houve outros que não resistiram em encontrar-se. Fazia-se naquela tasca uma fascinante incursão na intimidade de um regime autoritário, obrigado a lidar com milhões de desempregados insatisfeitos e uma juventude que contesta abertamente a sua autoridade. Quanto tempo vai durar esta situação? Será que vão passar-se mais 50 anos sobre o 11 de Novembro de 1975 e tudo permanecerá assim, sem mudarem as coisas nem sequer as moscas? Só espero que não seja apenas quando o mundo estiver todo de patas para o ar!
Estimados leitores, meus camaradas e companheiros de luta, sinto que fui um pouco longe do habitual. Por isso, chega por hoje. Cumprimentando os meus estimados leitores, familiares, amigos e companheiros de luta, espero que o nosso próximo encontro aconteça no domingo que vem, como sempre, à hora do matabicho.
Forte da Casa, Portugal, 12 de Outubro de 2025
PS: Foi com enorme satisfação e incontido orgulho que recebi a notícia da atribuição do Prémio Camões deste ano a Ana Paula Tavares, poeta e historiadora angolana. Nada mais merecido. Viva Ana Paula, viva o nosso País. Beijinhos mil.

PARABÉNS JACQUES DOS SANTOS
Celebra connosco uma dupla ocasião especial: o lançamento de “Fabuloso Mundu Iêtu” e o 82.º aniversário de Jacques Arlindo dos Santos, uma referência maior da literatura e cultura angolana!
Neste novo livro, o autor mergulha num universo alegórico em que animais governam e guerreiam, espelhando as contradições sociais, políticas e históricas de Angola. Da sanzala de Katambi à nação Wakangu, através de marimbondos sedutores, hienas traiçoeiras e chefes autoritários, “Fabuloso Mundu Iêtu” constrói uma crítica mordaz à exclusão, ao poder e à decadência moral, utilizando magistralmente a oralidade, a sátira e o Kimbundu.
Jacques Arlindo dos Santos, cronista, escritor multipremiado, fundador da Chá de Caxinde e voz activa da cultura angolana, celebra não só mais um ano de vida, mas também uma vida dedicada ao pensamento crítico, à defesa da democracia e à promoção das letras nacionais.
Homenageia o legado do autor, lê e partilha esta obra fundamental, disponível em https://kioxke.ao/livros/1070
Parabéns ao autor.Sempre atento aos pormenores que desafiam o mundo.