A QUEM INTERESSA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?

Os conhecimentos das comunidades locais sobre a natureza têm sido ignorados pela hegemonia do conhecimento científico racional, universal e instrumental, mas a utilização desses conhecimentos local é fundamental para a construção de um novo paradigma científico subjacente ao Desenvolvimento Endógeno.

POR CESALTINA ABREU

A África é a única região do mundo onde os modelos a que as crianças são/estão expostas (anjos e santos, empresários, apresentadores de TV, artistas de cinema, etc.) não são dos seus contextos[1]. As crianças africanas são as únicas no mundo cuja socialização começa com a aculturação, aprendendo sobre outros mundos e outras culturas numa língua estrangeira. 

O continente africano experimentou, no início deste século, das maiores e mais rápidas taxas de crescimento económico do mundo. De facto, 10 das 20 economias que mais cresceram entre 2005 e 2010 encontravam-se na África Subsaariana. Isso foi impressionante, sem precedentes, dado o passado e a história recente do continente. Actualmente, e segundo as Projeções do FMI (Out 2023), das 20 economias com crescimento mais rápido no mundo em 2024, 12 são africanas. Mas qual o reflexo que isso tem na vida dos africanos?

Esta região continua a ter a maior incidência de pobreza multidimensional no mundo. Privações simultâneas em saúde, educação e padrões de vida afectam pelo menos 65% do total da população dos 37 países subsaarianos. A região tem a maior prevalência de fome e de desnutrição. O crescimento económico é acompanhado pela desigualdade social; na verdade promove-a, potencia-a, devido às enormes disparidades na expectativa de vida dos diversos grupos sociais que, apesar de mostrar uma tendência de aumento, ainda era, à época, cerca da metade da dos países desenvolvidos. Os indicadores de alfabetização, apesar de mostrarem uma tendência crescente, ainda eram, e são, os mais baixos do mundo. A taxa de matrícula no ensino superior na África Subsaariana variava de 4 a 6,9% no período (dependendo das fontes), e não melhorou, pelo contrário. Em 2014, a taxa bruta de matrícula no ensino superior(licenciaturas, mestrados e doutoramentos) não ultrapassou 8%, muito atrás do Sul da Ásia (23%, a segunda média regional mais baixa) e da média mundial (34%)[2]

Esses indicadores mostram claramente que os africanos perderam os benefícios do crescimento económico de então, e continuam a perder, na actualidade. E uma das causas é o fraco investimento no capital humano, principalmente por meio da educação. Para as sociedades africanas se tornarem equitativas e justas, precisam transformar o crescimento económico em desenvolvimento sustentável, nos seus termos – desenvolvimento endógeno -, e encaminhar a África na rota do futuro.  Falar em desenvolvimento sustentável (DS) tornou-se prática comum, mas com vários sentidos e intenções. Governantes, administradores, políticos, empresários, e profissionais relacionados, recorrem ao termo para amenizar acções de degradação do ambiente e garantir metas preconizadas pelo crescimento económico. Há uma noção de “contradição”, inerente à sua concepção e aplicabilidade, que tem sido usada para ocultar interesses e premissas do modo capitalista de pensar: assegurar maior lucratividade, sem resistências, nem custos sociais e ambientais, não por acaso designados “externalidades negativas” (Redclift, 1994). Daí a pergunta que escolhi para título deste texto: A quem interessa o Desenvolvimento Sustentável? 

Porque, de imediato, outras questões pertinentes se colocam: É possível alcançar o Desenvolvimento Sustentável sem alterar condicionamentos estruturais nas relações de troca desiguais entre países? Como conciliar os conflitos existentes entre “Norte” e “Sul” na concepção e uso da Natureza comum a todos?  

Defende-se a participação da sociedade em projectos e programas relacionados com a conservação ambiental, mas despreza-se a operacionalização dessa dimensão tão relevante, porquanto pressupõe um autêntico envolvimento da população. Na prática, apenas as dimensões ecológica e económica são explicitadas na aplicação do conceito. Outra questão é a impossibilidade dessas dimensões se articularem como um todo por terem lógicas ou racionalidades específicas. 

A hegemonia da racionalidade instrumental a favor do Estado e do Mercado – como entidades dominantes – desfavorece os interesses da comunidade e da relação solidária com a Natureza. 

Isto significa que a “sustentabilidade” do “desenvolvimento social” só seria possível se interesses e expectativas do Estado, do Mercado e da Comunidade fossem equiparados. Tempos atrás, o conceito de crescimento económico era percebido em oposição ao conceito de desenvolvimento social. Com a vulgarização do conceito de Desenvolvimento S essa distinção desapareceu, e em termos teóricos e práticos, em lugar de solucionar, passou a ocultar a contradição entre crescimento económico e o desenvolvimento social. Em lugar de operar uma aproximação entre os dois conceitos, o conceito de Desenvolvimento Sustentável acabou invalidando o confronto entre as duas tendências contraditórias. 

Retomando o conceito de Desenvolvimento Sustentável segundo o Relatório Brundtland (1987), este é concebido em 3 dimensões: ecológica, económica e sociopolítica. Uma análise crítica das 3 dimensões pode levar a uma definição operacional para os interesses de sociedades mais pobres no cenário geopolítico actual. Na dimensão sociopolítica há 2 tipos de poderes: (a) o poder de grupos e classes sociais em estabelecer relações de dominação, e (b) o poder sobre os recursos naturais e a relação entre conhecimento e poder sobre a natureza. 

Essa distinção é importante devido às relações desiguais de dominação entre ricos e pobres, e aos conhecimentos que as populações “tradicionais” e locais têm sobre os “seus” recursos naturais. Compreender o poder sobre esse conhecimento pode ser a chave para um desenvolvimento realmente local e sustentável. Também porque o poder universal (do capitalismo e tecnológico) sempre gerou resistências e oposições que, ignoradas no passado, ressurgiram e confrontaram-se com o poder central e hegemónico. Isto revela uma oportunidade à participação da sociedade civil na busca de alternativas à globalização hegemónica e desigual. 

Os conhecimentos das comunidades locais sobre a natureza têm sido ignorados pela hegemonia do conhecimento científico racional, universal e instrumental, mas a utilização desses conhecimentos local é fundamental para a construção de um novo paradigma científico subjacente ao Desenvolvimento Endógeno.

Para as sociedades africanas, por exemplo, como referido no texto sobre o UBUNTU, o conceito de cultura inclui valores que enfatizam:  

(1) a importância da comunidade sobre o indivíduo; 

(2) uma visão cíclica e não unilinear de “desenvolvimento” (uma vida melhor); 

(3) as noções de “estar” e “ser”, em vez de, “ter” ou “fazer”; 

(4) uma noção de harmonia com, e não de dominação – ou destruição – da natureza.

A imposição da noção de “desenvolvimento” das sociedades dominantes, “do Norte”, às sociedades dominadas, “do sul”, durante a dominação colonial e, de maneira ainda mais acentuada, na dominação pós-colonial (neocolonialismo), implica num “acto de destruição” de um modo “nativo” de viver; altera a relação entre o nível micro (carências psicológicas, fisiológicas, sociais e do quotidiano) e as macros estruturas (económica e política); dissolve a relação de equilíbrio entre o ser humano, a natureza e o divino/sobrenatural.

Uma abordagem ao Ambiente tem necessariamente de ser interdisciplinar e privilegiar: estudos de caso onde se cruzem as questões ambientais com as questões sociais, observação in situ dos fenómenos, mobilização dos saberes locais e criação de bancos de dados quantitativos e qualitativos, construção de indicadores adequados à descrição socio-ecológica das comunidades humanas e da sua inserção ambiental. 

Isto implica a formação em ciências sociais e humanas, que permita não apenas preparar bons técnicos, mas acima de tudo Cidadãos, com preocupações cívicas que transcendem as fronteiras territoriais dos respectivos países e o exercício profissional, e sejam orientados para as questões da participação pública e da justiça e democracia ambientais. Estas, justiça e democracia ambientais, pressupõem: 

  • A distribuição do risco (que evidencia novas desigualdades numa sociedade do risco), 
  • Os processos de informação, consulta e participação do(s) público(s); 
  • Os constrangimentos sobre as acções humanas e as identidades sociais em ambientes naturais ou construídos.

Uma Estratégia de Desenvolvimento Sustentável assenta no princípio de garantir que as pessoas desenvolvam os conhecimentos, os valores e as habilidades para participar das decisões sobre o que fazer e como fazer, individual e colectivamente, local e globalmente, para melhorar a qualidade de vida respeitando o Planeta e sem comprometer o Futuro. Precisamos de uma Educação que equilibre o bem-estar humano com a economia, as tradições culturais e o respeito pelos recursos naturais da Terra. Que adopte métodos e abordagens interdisciplinares para desenvolver uma ética de aprendizagem ao longo da vida, e promover o respeito pelas necessidades humanas compatíveis com o uso sustentável dos recursos naturais e as possibilidades do Planeta. E, não menos importante, que contribua para a recriação de um sentimento de Solidariedade Global.  

Valorizar a interdisciplinaridade e a transversalidade, como eixos estruturantes dos programas curriculares, permitirá criar capacidades para identificar e abordar os temas a reflectir e debater, promovendo a inclusão do contraditório e o respeito pela diferença e pela diversidade.   

7 Março 2024

[1] Obanya, Pai, (2011) FOREWORD. Nsamenang, A. B. & Tchombe, T. M.S. (orgs) (2011). Handbook of African Educational Theories and Practices: a generative teacher education curriculum. Human 

Development Resource Centre (HDRC), Cameroon. ISBN: 978-9956-444-64-2 

[2] https://www.hauniversity.org/pt/EducacionSuperiorAfrica.shtml

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