A África contemporânea apresenta desajustes entre as suas estruturas institucionais e as suas próprias dinâmicas sociais. É necessária uma compatibilização entre princípios e valores da modernidade e as lógicas tradicionais, para corrigir disfunções.
Recebi, tempos atrás, a mensagem que aqui reproduzo:
Meu filho tudo na vida é kixiquila...
“Tudo na vida é kixiquila meu filho. Se você não aparece nos problemas dos outros, não espere que os outros apareçam nos seus; se você não contribui nos problemas dos outros, não espere que contribuam nos seus. Adulto é diferente de criança, pois adultos têm responsabilidades sociais, e que muitas vezes fazemos não porque queremos, mas porque devemos fazer”.
Lembrei-me de muitas leituras sobre esta prática em África. E não consigo deixar de a associar ao entendimento que tenho do UBUNTU enquanto Filosofia, Ética Social e Modo de Vida, centrado no Respeito pelo Outro.
A kixiquila é uma prática financeira percebida como alternativa à bancarização, e está muito associada a situações de pobreza ou precariedade, como resposta mais efectiva e confiável às crises que enfrentamos faz tempo. Está cada vez mais presente no nosso quotidiano. Informal, sem burocracias e sem juros, baseia-se nos princípios da solidariedade e da reciprocidade entre os/as participantes (embora seja mais comumente praticada entre mulheres), e tem como base uma relação de confiança. As regras são estabelecidas pelas/os e entre as/os participantes. Entre essas regras, uma das mais importantes é a que define a quantidade / o valor do que todas/os participantes entregam a um/a dos membros do grupo, numa periodicidade – diária, semanal, mensal – também ela estabelecida colectivamente. Num grupo com 30 participantes, se cada um/a entregar 5 mil perfaz um total de 150 mil, valor que pode permitir resolver alguns problemas. No dia, semana ou mês seguinte, um/a outro/a receberá a totalidade do valor acordado.
Na minha perspectiva, esta é uma prática que se aproxima da economia solidária orientada pela cooperação, baseada na confiança e inspirada pelo Bem-Comum e pela Solidariedade. Cada vez mais acredito que precisamos conhecer mais e melhor as filosofias africanas, e as práticas sociais que nelas se inspiram. Se valorizássemos mais as nossas culturas, se olhássemos mais para dentro, se procurássemos conhecer melhor o meio que nos rodeia, as enormes potencialidades que temos – começando pelas pessoas – e desperdiçamos em nome de uma mimética de ‘sociedade moderna’.
O avanço do processo de globalização não levou à instituição/aceitação de um padrão cultural único e universalmente aceite, na medida em que, apesar da expansão dos mercados e das tecnologias de comunicação, vistas como as forças modernizadoras desse processo, a pluralidade continua a ser a ‘marca registada’ neste início de milênio, ou seja, o embate entre as dinâmicas da globalização e as dinâmicas locais continua a prometer muitos e novos desenvolvimentos.
A África é um laboratório privilegiado para o entendimento dos actuais conflitos entre Modernidade e Tradição, o que nas sociedades ocidentais em geral se relaciona com a ideia de ‘regresso ao passado’, em resultado da constatação de que cada vez mais as sociedades africanas se comportam de acordo com normas que não seguem o ‘legado’ moderno que os colonizadores tentaram perpetuar, sendo entendidas como emanações da África tradicional, mas numa perspectiva de retrocesso.
A era da modernização, inaugurada com o processo de industrialização e ancorada nos valores universais da liberdade, fraternidade e igualdade, caracterizou-se pela ênfase colocada no alcance de objectivos económicos individuais, que permitiu a expansão do sistema capitalista à escala mundial, aportando consigo as consequências de uma mobilidade social nunca alcançada, destituindo os privilégios de progresso económico e bem-estar social de condições pré-determinadas pela origem de classe. Por outro lado, provocou uma marcante estratificação social e uma crescente desigualdade social, acentuando a polarização cada vez mais visível das sociedades, em função da sua localização no sistema mundial.
Esta nova fase da modernidade não se satisfaz mais com os arranjos institucionais moldados no processo universal de democratização; as exigências por mais participação nos processos de tomada de decisão, como meio de fazer prevalecer o respeito pela diferença e o direito de contestar a ordem social prevalecente, são veiculadas por novos actores sociais, particularmente os movimentos sociais, os grupos de cidadãos e os activismos, que vêm conquistando cada vez mais espaços de intervenção em todo o mundo, embora tenham mais visibilidade nas sociedades do centro do sistema capitalista internacional, as que primeiro alcançaram, de forma mais ou menos generalizada, os objectivos de progresso económico e do bem-estar social.
A África contemporânea apresenta desajustes entre as suas estruturas institucionais e as suas próprias dinâmicas sociais. É necessária uma compatibilização entre princípios e valores da modernidade e as lógicas tradicionais, para corrigir disfunções. No diálogo com as matrizes tradicionais torna-se mais fácil entender os reajustes institucionais requeridos, através da adopção de soluções que se adequem aos aspectos relevantes da cultura política local, tirando partido da pluralidade cultural que nos caracteriza e descobrindo/inovando as formas de viabilizar a utilização de poderes tradicionais como ‘agências de descodificação semântica’ entre os diversos grupos sociais que compõem a sociedade visando o alcance de compromissos baseados em consensos (mútuos entendimentos construídos colectivamente) e dissensos (reconhecidos como válidos porque moralmente aceitáveis) para acomodar as diferenças, contribuindo eficazmente para a estabilidade social.
06 Maio 2024