CONVERSA NA MULEMBA

O Presidente fala de novas refinarias para que os combustíveis tenham menores preços, quando o que se exige é a elevação do poder de compra dos angolanos
Os eventos dos últimos dias de Julho foram dolorosos, em primeiro lugar por terem gerado pelo menos 30 mortos, o número mais elevado num único acontecimento após o alcance da paz, se exceptuarmos os casos de acidentes de viação. Ao contrário da
mensagem do Presidente da República de 1 de Agosto, que referia uma putativa derrota de quem esteve na origem de tais eventos, todos nós, angolanos, fomos derrotados. Isto não significa, obviamente, falta de condenação dos actos perpetrados contra bens públicos e privados e contra as forças policiais, bem como de todo o tipo de desacatos.
Tem havido boas análises sobre o acontecido, infelizmente, todas divulgadas através da comunicação social privada e das redes sociais, nenhuma na comunicação pública. Mesmo a assinada por Paulo de Carvalho, deputado do partido maioritário, o que deveria envergonhar os responsáveis pela mordaça que a silencia e pela sua mediocridade persistente. A propósito dos acontecimentos semelhantes de 10 de Janeiro de 2022, escrevi nesta coluna “… [a comunicação social pública] não informa, não educa, não estimula a pensar, não promove o diálogo, o debate e a cidadania, enfim, não cumpre o seu papel… talvez se tenha atingido o mais baixo nível de sempre desde a nossa independência”. Tal como em 2022, ela contribuiu para a desinformação e para comportamentos na origem dos recentes desacatos. Chegará o dia em que o MPLA compreenderá como o papel da “sua” comunicação tem contribuído para a derrocada a que se assiste.
Não parece aceitável fazer, como se tem feito, críticas e acusações sem uma análise das razões que levaram às violações da lei e da ordem. Em Junho de 2023, o Executivo subiu o preço da gasolina de 160 para 300 kz e tentou mitigar os efeitos sobre a população mais pobre e sobre os operadores agrícolas e pesqueiros através da atribuição de cartões de débito. O processo foi tão desorganizado e corrompido que foi necessário suspender as medidas algum tempo depois. Entretanto, a inflação havia disparado. Como de hábito, o desastre não foi avaliado, a situação dos subsídios continuou insustentável e decidiu-se nova subida de preços, agora do gasóleo, que passou sucessivamente de 135 para 200 kz em Abril de 2024, para 300 kz em Março de 2025 e para 400 kz quatro meses depois. Num período inferior a um ano e meio, mais do que triplicou. Tudo isso sem explicações aos cidadãos e sem medidas de protecção às famílias mais carentes e ao sector produtivo. A declaração do ministro dos Transportes de que o aumento do preço do gasóleo não afectaria o preço dos transportes foi conversa fiada.
Segundo o ex-ministro da Economia e Planeamento Neto Costa – outro fazedor de opinião ignorado pelo sistema, apesar da qualidade das suas análises – a perda do poder de compra dos funcionários públicos, nos últimos quatro anos, é de 38%. Isto tem consequências imediatas no nível de vida de milhões de cidadãos, aumentando o desespero generalizado. E ao desespero há que juntar a indiferença dos governantes e das elites em geral perante o sofrimento das pessoas. Um governante afirmou recentemente que falar de pobreza extrema em Angola é fazer o jogo dos incentivadores de tumultos e que não existe mais malnutrição aguda, ignorando que a desnutrição crónica em Angola teve um aumento histórico de quase 38% nos últimos 17 anos e o insuspeito Jornal de Angola, que, no seu número de 22/6/25, reporta a morte de 33 crianças, nos primeiros cinco meses, só na província do Cubango. Ignorando até que o Titular do Poder Executivo, em documento sobre a reestruturação do Programa de Desenvolvimento Local e Combate à Pobreza, define ser necessário reduzir a pobreza extrema de 31% para 27% até 2027. Tal afirmação e a ignorância inerente são indicadores claros dessa indiferença, da arrogância e do preconceito, digamos, de classe.
Neste contexto, com ou sem redes sociais, qualquer conspiração contra o governo angolano tem terreno fértil para germinar. Avisos não têm faltado, e nem mesmo a crescente impopularidade de João Lourenço – assumida igualmente por Paulo de Carvalho muito recentemente, é bom lembrar – tem obrigado o Presidente da República e o MPLA a reflectirem sobre as mudança por que a sociedade reclama. Pelo contrário, a insistência na desvalorização das manifestações, plasmada na entrevista do Presidente à CNN Portugal, na propagação de mais festas com ostentação pornográfica de um seu colaborador directo e na realização de despesas de prioridade mais do que duvidosa, só fizeram aumentar a falta de confiança da população no Executivo e a “raiva” dos jovens, principalmente os da periferia das cidades que já nada têm a perder, em relação aos privilegiados. Pensem, dirigentes do MPLA, por favor. Se o partido tivesse a popularidade de outrora, seria a população a denunciar os “agentes externos” e a impedir a vandalização de bens.
Na sua mensagem de 1 de Agosto, tardia e pouco apaziguadora, ao contrário do que compete a um Presidente de todos os angolanos, o Presidente da República disse que o Estado está a fazer o seu melhor para resolver os problemas sociais através de vários investimentos. A questão está aí. Primeiro que tudo, colocar o Estado no lugar do Executivo é um indicador de falta de rigor na separação dos papéis dessas instituições, o que origina o desrespeito pela autonomia dos diferentes poderes de Estado, confundindo os cidadãos e as instituições – um mal muito comum em África. Segundo, os investimentos referidos, apesar dos custos estratosféricos, não têm efeitos na melhoria das condições de vida da população, por muito que o Presidente insista em pensar o contrário. Depois, e o mais importante, se o Estado angolano, dominado como está por um partido, faz o seu melhor, então não podem os cidadãos ter confiança, nem esperança, na solução dos seus enormes problemas enquanto perdurar a presente fórmula.
As políticas públicas actuais têm de ser revistas. O Executivo não consegue sair da teia em que está enredado. Na já citada entrevista à CNN, o Presidente ressaltou o facto de os preços dos combustíveis serem dos mais baratos do mundo. Em contrapartida, os salários em geral estão no outro extremo. O Presidente fala de novas refinarias para que os combustíveis tenham menores preços, quando o que se exige é a elevação do poder de compra dos angolanos. O mesmo tipo de raciocínio levou à criação de mais municípios, com o argumento de aproximar os serviços dos cidadãos, quando o mais lógico, e menos dispendioso, seria dotar as antigas comunas dos serviços em causa.
O aumento do número de individualidades e de organizações a propor diálogo inclusivo e estabelecimento de um pacto, com diferentes adjectivações, para que Angola consiga vencer a actual crise, é de louvar. Um pacto pelo respeito da Constituição enquanto se prepara uma nova e que abarque a reconciliação e as amnistias que permitam, neste período de comemoração da independência, o reinício definitivo do País. Sem qualquer tipo de exclusão.
*Novo Jornal, 15 de Agosto de 2025